Claridades do sul | Page 7

António Gomes Leal

*A UMA JUDIA*
(SAUDAÇÃO)
Avé Regina!
(Hymno Catolico)
Podem apagar o Sol e as estrelas, bastam-me os olhos da minha amada!

(Idyllio persa)
Le second soleil! Le second soleil.
(Phan taisies scientifiques de Sam)
Ó filha d'Israel, ó vestal impolluta!
--Serena como a côr diaphana do
azul--
O rebelde da Luz vencêra Deus na lucta
Se armara contra os
ceus teus cabellos do Sul.
Filha de Cham e Loth, tu és o ideal vivo!
(Ó ouro, incenso e myrra, ó
licor nunca visto!)
Quando nos queima a luz do teu olhar esquivo,

Teus olhos ferem mais do que os cravos do Christo!
São dous cravos de luz, dous limpidos espelhos,
--A luminosa cruz
onde me ensanguentei!--
N'elles soletro claro os grandes Evangelhos,

E n'elles leio mais que nas taboas da Lei!

Quando passas por mim, toda a minha alma anceia!
E os meus
olhares vão cobrindo-te de beijos,
--E tu passas--archanjo em corpo
de Phrynea,
E biblia encadernada em lubricos desejos.
Ah! teus olhos crueis, limpidos, negros, baixos,
Se um dia o sol
morrendo, enoutecesse os ceus,
Ser-me-hiam, mulher! como dois
grandes fachos,
Á luz dos quaes iria a ver se achava Deus!
*A VISITA*
Hontem dormia á noute--e, eis que desperto
Sacudido d'um vento
agudo e forte,
Como um homem tocado pela Morte,
Ou varrido
d'um vento do deserto.
Accordei--era Deus, que de mim perto,
Me dizia: Alma sceptica e
sem norte!
É preciso que creias e te importe
Adorar o Deus Uno,
Eterno, e Certo!
É preciso que a fé cresça em tua alma
Como no inutil saibro a verde
palma,
Verme! filho da Duvida--Eis-me aqui!
Eu sou a Espada o Antigo, o Omnipotente!
Crê barro vil!--Mas eu,
descortezmente,
Voltei-me do outro lado e adormeci.
*PALACIOS ANTIGOS*
A Anthero do Quental.
Bons castellos leaes nas rochas construidos,
Ás contorções do vento,
á chuva ennegrecidos,
Que vamos admirar na angustia dos poentes;

Grandes sallas feudaes com tellas de parentes,
O que fazeis de pé,
como entre os nevoeiros,
Os antigos heroes e as sombras dos
guerreiros?!
Uma grande tristeza enorme vos habita!
No entanto a alma antiga
ainda em vós palpita,
Evocando a emoção das chronicas guerreiras;


E mau grado o destroço, a herva, e as trepadeiras,
--Como um desejo
bom nas almas devastadas--
Cresce, ao vento, uma flor no peito das
sacadas!
A parasita hera avassalou os muros!
Aninha-se o bolor nos cantos
mais escuros,
Tudo dorme na paz das cousas silenciosas;
E nos
velhos jardins aonde não ha rosas,
--Só resistindo ainda aos seculos
injustos--
Uma Venus de pedra espera entre os arbustos!
Paira em tudo o silencio e o lugubre abandono
Das cousas que já
estão dormindo o grande somno,
Evocando ainda em nós os velhos
cavalleiros,
--E ás lufadas do vento, os grandes reposteiros,
Entre as
nossas visões das epocas sublimes,
Agitam-se ao luar vermelhos
como crimes.
Mas no entanto o poeta entende aquellas dores,
E as mudas solidões,
os largos corredôres,
As boas castellãs as gothicas janellas,
Abertas
toda a noute a olhar para as estrellas;
Só elle sabe os ais e os gemidos
das portas,
--E inveja ás vezes ser o pó das cousas mortas!
*CAIN*
Cain no mundo errante, desterrado,
Fugindo á sua dôr cruenta e dura,

Morria sobre um valle, abandonado,
No sollo primitivo da
Escriptura.--
O remorso--esse mal que não tem cura--
Não abatia o peito
allucinado
Do que nasceu no seio do Peccado
Que herdou depois a
géração futura.
Do Ceu sem mendigar luz nem consollo
Conservava inda erguido e
altivo o collo;--
Mas nessa hora fatal que a todos vem...
Cain velho rebelde,--e atheu primeiro--
Nosso pae, nosso irmão,
como um guerreiro.
Bradou, caindo--Ó Terra! ó Minha Mãe!

*A PRIMAVERA*
De Julio Forni
Hãode dizer-me--Insensatos!
Que tenha novos amores,
Que brilham
já outros soes,
De novo se abrem as flores
E é o tempo dos
rouxinoes.
E dirão inda depois:
Que a primavera começa,
E andam aromas no
ar,
Que nos sobem á cabeça,
Como um vinho singular.
E eu dir-lhes-hei: Que m'importa!
Faz frio, fechem-me a porta!

--Ella, o meu bem, meu abrigo,
Levou, desde que está morta,
A
Primavera comsigo!
SEGUNDA PARTE
REALIDADES
*ACCUSAÇÃO A CHRISTO*
(A Theophilo Braga)
Bradava um dia ao Christo, ao Redemptor,
Satan, cançado d'insultar
os astros:
--Eis-te pendido ahi qual velha flor,
Propheta escarnecido
nos teus rastros!...
Vê como a Egreja vae! baixel sem mastros!
Navio roto em mares do
Equador!
E os seus padres tem ouros e alabastros,
E folga,
Messalina sem pudor!
Tem lançado teu corpo aos cães e aos corvos!
Falsificado a Lei, cheia
d'estorvos,
E fogueiras erguido, ó Christo! ó Cruz!...
Satan dizia mais... mas lenta e lenta,
Uma lagrima viu sanguinolenta

Escorregar na face de Jesus!

*DE NOUTE*
A João de Deus
Elle vinha da neve, dos trabalhos
Violentos, custosos, da enxada;

Cantando a meia voz pelos atalhos.
A mulher loura, infeliz, resignada,
Cosia junto á luz. O rijo vento

Batia contra a porta mal fechada.
Ao pé havia um Christo, um ramo bento,
E uma estampa da Virgem,
colorida,
Cheia de magoa olhando o firmamento.
Uma banca de pinho, mal sustida,
Vacillante nos pés, um candieiro;

Companheiros d'aquella negra vida.
O homem alto, pallido, trigueiro,
Entrou; tinha as feições queimadas,
duras
Dos que andam com a enxada o dia inteiro.
A mulher abraçou-o. As linhas puras
Do seu rosto contavam já
tristezas
De grandes e secretas amarguras.
Tinha chorado muito as estreitezas
D'aquella vida assim! Talvez
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