Claridades do sul | Page 9

António Gomes Leal
estrella
Deixou-os ir
tambem--que um d'elles se o levava
Era por ser aquelle a quem o pae
beijava,
E affagava, sorrindo, e enchendo de carinhos,
Quando o ia,
aguardar á noute, nos caminhos!
A miseria é fatal! dorida farça escura
Que termina o christão latim da
sepultura!
E assim pensava só, vestida de tristeza
A nervosa mulher, n'aquella
natureza
Sombria, dura, má; por entre aquelles gelos,
E aquelle
vento cru rasgando-lhe os cabellos:
«Ella nascera só para a dôr!--da Desgraça
Ha muito havia já que lhe
amargára a taça!
Não conhecera nunca os risos e agasalhos;
--Os
miseraveis Deus só faz para os trabalhos!
E, áquella hora, talvez, felizes e contentes,
Cheios do bom calor os

ricos indolentes
Comeriam, á luz das vélas perfumadas,
Nas mesas
sensuaes; e em quanto nas estradas
Pelos atalhos máus e as veredas
sombrias,
Ella ia a tiritar por entre as nevoas frías.
Sem pão, sem
luz, sem Deus--alegres satisfeitos,
Elles riam, talvez, da chuva nos
seus leitos!
O sol d'elles é bom!--Nos duros ceus serenos
Parece que não ha um
Deus para os pequenos!»
E continuava a errar por campos, por florestas;
Era o inverno cruel,
tinham-se ido as giestas;
Iam sangrando os pés nos asperos espinhos;

A neve amortalhava os lividos caminhos.
«Ah como os ricos são serenos e felizes!
--Elles sordidos, vis, podem
comer raizes,
Não ter lume nem pão, andarem macilentos
Ás
nevoas e aos soes e aos gelos dos relentos;
São os parias, os Jobs, os
vis--e rejeitados
Como os mortos que traz o mar esverdeados!
E as mães se não serão leaes, boas, contentes!
Sempre os filhos com
pão, os filhos sempre quentes,
Cheios d'amor e sol, vestidos de
cuidados
De beijos, d'affeições, d'arminhos, de bordados,
Amados
seraphins, olympicos amores,
E áquella hora talvez em leitos como
em flores;»
--Em quanto os seus, da fome encovados, immundos,

Tremendo d'ella ao pé sublimes e profundos,
«Sem pão, talvez sem
pae, sem leito brando e leve,
Choravam semi-nús, descalços pela
neve!»
Em toda a parte a neve amortalhava o sollo!
Por fim cada vez mais chorava o filho ao collo;
Não rompia o luar,
não tremia uma estrella;
Nem mesmo o proprio ceu se amerciava
d'ella;
Lembrou-lhe as lendas más de mortos e de roubos;
E
ouviu-se já mais perto uivar de fome os lobos.
Cada vez, cada vez, se approximavam mais;

Ella poz-se a correr por selvas, por pinhaes;
Mas caiu-lhe a
lanterna,--os filhos aturdidos
Açoutavam o ar de choros, de gemidos,

Já tinha em sangue os pés dos rijos matagaes;
Os lobos cada vez se
aproximavam mais!
Na sombra, então, ouviu-se um grito lacerante,
Tinham levado um!...
Terrivel, n'este instante,
Voltou-se para traz, como hyena ferida,

Desvairada, feroz, tragica, enfebrecida,
Desejando rasgar, rugir, lutar
tambem;
Mas logo na sua dôr, lembrou-se que era mãe,
E que ia a
expôr os mais aos dentes aguçados
Dos animaes crueis.--Elles, os
desgraçados,
Eram filhos tambem!--tambem seu coração!
--Fraca e
vencida emfim poz-se a chorar então.
«Ella vivêra sempre entregue á dura sorte,
Tão avara, cruel, que era
mais doce a morte;
Sempre a escrava fiel da Familia, do Lar,
Das
duras afflicções; sabia só chorar;--
Não invejára nunca as pompas
nem os brilhos;
E até nem mesmo o Ceu lhe concedia os filhos!»
Dir-se-hia a noute eterna, a noute desolada;
Começou a correr nos
campos desvairada;
Depois voltou atraz... ouviu-se um ai profundo;

Uivavam outra vez--Levaram-lhe o segundo.
Então o medo escuro apederou-se d'ella!...
Não se via no ceu tremer
nem uma estrella,
A solidão profunda, a nevoa fria, intensa,
E em
toda a parte só chovendo a neve immensa.
Proseguiu a correr, louca, feroz, sem tino,
Quasi o filho a esmagar
d'encontro ao seio fino,
Na dura escuridão, chamando em altos brados

Os nomes immortaes, os symbolos sagrados;
Pedindo compaixão,
miseravel, vencida,
Fraca, chorando já aquella negra vida,
Convulsa
de terror;--mas, longe, lentamente,
Começaram a uivar os lobos,
novamente.
De novo retomou a barbara carreira
Desalentada já; até que quasi á

beira
D'um fosso aberto ali n'uma vereda escura,
Como um cadaver
cae em uma sepultura,
Por fim, quebrada, hostil, olhando os negros
ceus
Caiu cheia de dôr, injuriando Deus.
No ceu surgia a lua--e já se ouvia agora,
Mais perto, elles uivar na
solidão sonora;--
Ali, ella aguardou que fossem devoral-a.

..........................................
Serena ergueu-se a lua, a lua côr
d'opala!...
*MISERIA OCCULTA*
Bate nos vidros a aurora,
Vem depois a noute escura;
E o pobre
astro que ali móra,
Não abandona a costura!
Para uns a vida é d'abrolhos!
Para outros mouta de lyrios!
Bem o
revelam seus olhos,
Pisados pelos martyrios!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que
gaba o velludo
D'aquelles olhos honestos!...
Ninguem seus olhos brilhantes
Descobre n'essas alturas...
E
aquellas formas tão puras,
E aquellas mãos elegantes!
Sempre á costura inclinada!
Morra o sol ou surja a lua
Nunca vi
descer á rua
Aquella loura encantada!
Aquelle lyrio dobrado
Por que assim vive escondido!
Eu bem
sei!--não tem calçado!
E é muito usado o vestido!
Por isso não tem porvir
Morrerá virgem e nova,
E aguarda-a bem
cedo a cova...
Que eu bem a ouço tossir!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que
gaba o veludo
D'aquelles olhos honestos!
Pobre flor desfalecida
Tão nova e ainda em botão!
Como teve

estreita a vida,
Terá estreito o caixão!
*LISBOA*
Cette ville est au bord de l'eau; on dit qu'elle este batie en marbre...

(Baudelaire)
De certo, capital alguma n'este mundo
Tem mais alegre sol
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