escudo já partido,
Sancho Pança a Materia, e o rei dos escudeiros!
Vinha sereno e grave, escarnecido e exangue,
Emmagrecido e caalmo
em meio dos estorvos,
--Vinham ladrar-lhe os cães, e pressentindo
sangue,
Grasnavam-lhe em redor bandos negros de corvos.
Sancho Pança fiel, vasculhava a escarcella,
E ascultava a borracha
emmudecida emfim;
Em quanto o Heroe scismava, inclinado na sella,
Na conquista ideal do escudo de Membrin.
Paravam aldeões, lavradores crestados;
Vinham á porta as mães,
fiando o linho fino;
E os magros charlatães viam passar, pasmados,
Na sombra d'um cavallo o extremo paladino.
Dançavam os truões; as sujas enxurradas
Com a lodosa voz,
perguntavam: Que é isto?--
Satan n'um corucheu, dizia ás
gargalhadas:
--Ó campeão do Bem! ó victima do Christo!
*O PUBLICANO*
Ils erraient sales et immonds, et avaient des dévotions hypocrites
(Dubois)
Um graõ doutor da Lei dizia ao publicano,
Junto ao atrio do templo,
em tempos da Judea,
Tambem tu vens orar, publicano sereia,
A tua
casa ardeu, ou deu na vinha o damno?
Jejuas tu agora e resas todo o anno,
Tu que levas o pobre e o orphão á
cadeia,
Que tiras á viuvez o pão, o leito, e a teia,
Tu que és avaro e
vil, pagão como um Romano?!
Que não resas como eu, que nunca vi desfeito
Dos compridos jejuns,
nem macerar o peito;
E que hospedas Satan, como o antigo Saul!
Não vês como estou sempre erguendo ao Ceu os braços?
--O
publicano então, disse, olhando os espaços:
«Tambem os poços são
voltados para o Azul!»
*A LYRA DE NERO*
Nos seus jardins pagãos, entre archotes humanos,
Na lyra de marfim
sobre as cordas douradas,
Nero vinha cantar ás noutes estrelladas,
Elegias d'amor e canticos thebanos.
Essa lyra do Mal que ouviram os romanos,
Que cantou entre o fogo,
as casas abrazadas,
E os lutos, os truões, as ceias depravadas,
Que
mysterios não viu, medonhos e profanos!
E, no emtanto, apesar da sua historia triste,
Se os tempos tem corrido,
a Lyra ainda existe
Do devasso real, do lyrico histrião...
Seu canto inda nos prende e ouvimol-o sem susto,
E, ó Terror! ó
Terror! eu que amo o Forte e o Justo,
--Ouço-o ás vezes tambem,
dentro do coração!
*MYSTICISMO HUMANO*
Sunt lacrimae rerum...
(Virgilio)
A alma é como a noute escura, immensa e azul,
Tem o vago, o
sinistro, e os canticos do sul,
Como os cantos d'amor serenos das
ceifeiras
Que cantam ao luar, á noute pelas eiras...
Ás vezes vem a
nevoa á alma satisfeita,
E cae sombria, vaga, e meuda e desfeita...
E
como a folha morta em lagos somnolentos
As nossas illusões vão-se
nos desalentos!
Tem um poder immenso as Cousas na tristeza!
Homem! conheces tu
o que é a natureza?...
--É tudo o que nos cerca--é o azul, o escuro,
É
o cypreste esguio, a planta, o cedro duro,
A folha, o tronco a flor, os
ramos friorentos,
É a floresta espessa esguedelhada aos ventos;
Não
entra o vicio aqui com beijos dissolutos,
Nem as lendas do mal, nem
os choros dos lutos!...
--E os que viram passar serenos os seus dias...
E curvados se vão, ás
longas ventanias,
Cheio o peito de sol, atravez das florestas,
Á
calma do meio dia... e dormiam as sestas,
Tranquillos sobre a eira,
entre as hervas nas leivas...
Vão cansados depois, entre os ramos e as
seivas,
Outra vez sob o Sol--a sua eterna crença!--
Em fructos
resurgir á natureza immensa,
E, aos beijos do luar, descansarem
felizes,
Da bem amada ao pé, no meio das raizes!
Morrer é livramento! oh deve saber bem
Sentir-se dilatar na Natureza
mãe!
Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, herva ou alfombra,
A rosa
que perfuma, a arvore que dá sombra!
Estremecer na encosta ás
nocturnas geadas,
E recortar o azul das noutes constelladas!
Oh pelo claro azul d'essas noites serenas,
Que o segador trigueiro
entôa as cantilenas,
Tristes como a lua e o espinho dos martyrios,
E
que atravez do azul parecem cair lyrios!...
Quando a brisa levanta as
folhas indiscretas,
Noivam os rouxinoes e se abrem as violetas...
E
a Natureza tem como um sabor de beijos,
Que obriga a soluçar a alma
de desejos!...
Que segredos dirão nas brisas mensageiras,
Á doçura da lua, a flor
das larangeiras,
O lyrio, a madresilva, os jasmins vacillantes,
Que
foram já, talvez, seios fortes e amantes,
E que hoje' á branca luz dos
myrthos sideraes,
Conversam sobre o amor e os gosos ideaes
Do
tempo, que a fallar corriam breve as horas,
Que seus olhos leaes
tinham a côr d'amoras,
E debaixo do Ceu teciam longas danças,
Ao
pé da amante meiga e de compridas tranças!...
No lago somnolento a flor do nenuphar
Talvez é um coração que abre
para chorar!
O lyrio um seio bom,--e as violetas curvadas
São os
olhos talvez das doces bem amadas!...
Feliz o semeador que vive entre os arados,
O campo, os lentos bois,
longe dos povoados,
Entre os rijos irmãos humildes e trigueiros,
Que vivem sob o sol, á chuva, aos nevoeiros,
E quando á noute finda
os suarentos trabalhos,
Vem a doce mulher buscal-o nos atalhos,
Cujo olhar como a lua é tranquillo e consola,
E descanta chorando á
noute na viola!...
E os que andam pelo mar, alegres e contentes,
Entre as ondas e o Ceu,
saudosos, negligentes,
Entre os cantos do vento, olhos fitos
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