As Minas de Salomão | Page 4

H. Rider Haggard
O barão occupava um camarote de tolda, o melhor do Dunkeld,
espaçoso, arejado, com um sofá, espelhos, e duas largas cadeiras de
verga. O capitão John viera tambem. Todos tres nos sentamos,
accendendo os cachimbos, emquanto o moço corria pelos grogs.
Houve primeiramente um silencio. Outro creado entrou, a accender o
candieiro. Por fim appareceram os grogs.
O barão Curtis então passou a mão pelas barbas, n'esse geito que lhe
era costumado, e voltando-se bruscamente:
--Diga-me uma coisa, snr. Quartelmar... Aqui ha dois annos, por este
tempo, esteve n'um sitio chamado Bamanguato, ao norte do Transwaal.
Não é verdade?
--Perfeitamente, respondi eu, pasmado de que aquelle cavalheiro se
achasse, no seu condado, em Inglaterra, tão bem informado das
jornadas que eu fazia no sul d'Africa!
--A negocio, hein? acudiu o capitão John.
--Sim, senhor, a negocio. Levei uma carregação de fazendas, acampei
fóra da feitoria, e lá fiquei até liquidar.
O barão conservou durante um momento pregados em mim os seus
olhos cinzentos e largos. Pareceu-me que havia n'elles anciedade e
temor.
--E diga-me, encontrou ahi, em Bamanguato, um homem chamado
Neville?
--Encontrei. Esteve acampado ao meu lado durante uns quinze dias, a
descançar o gado antes de metter para o norte. Aqui ha mezes recebi eu

uma carta d'um procurador, perguntando-me se sabia o que era feito
d'esse sujeito... Respondi como pude...
--Bem sei! atalhou o barão. Li a sua resposta. Dizia o snr. Quartelmar
que esse sujeito Neville partira de Bamanguato, no principio de maio,
n'um carrão, com um serviçal e um caçador cafre chamado Jim,
tencionando puxar até Inyati, ultima estação na terra dos Matabeles,
para de lá seguir a pé, depois de vender o carrão. O snr. Quartelmar
accrescentava que o carrão decerto o vendera elle, porque seis mezes
depois vira-o em poder d'um portuguez. Esse portuguez não se
lembrava bem do nome do homem a quem o comprára. Sabia só que
era um branco, e que se mettera para o matto com um Cafre...
--É verdade, murmurei eu.
Houve outro silencio, que eu enchi com um sorvo ao grog. Por fim o
barão proseguiu, com os olhos sempre cravados em mim, insistentes e
anciosos:
--O snr. Quartelmar não sabe quaes fossem as razões que levavam
assim esse sujeito Neville para o norte?... Não sabe qual era o fim da
jornada?
--Ouvi alguma coisa a esse respeito, murmurei.
E calei-me prudentemente, porque nos iamos avisinhando d'um ponto
em que, por motivos antigos e graves, eu não desejava bolir.
O barão voltou-se para o seu companheiro, como para o consultar. O
outro, por entre a fumaraça do cachimbo, baixou a cabeça, n'um sim
mudo. Então o meu homemzarrão, decidido, abriu os braços,
desabafou:
--Snr. Quartelmar, vou-lhe fazer uma confidencia! Vou-lhe mesmo
pedir o seu conselho, e talvez o seu auxilio... O agente que me remetteu
a sua carta afiançou-me que eu podia confiar absolutamente no snr.
Quartelmar, que é um homem de bem, discreto como poucos, e
respeitado como nenhum em toda a colonia do Natal.

Dei um sorvo tremendo ao cognac, para esconder o meu
embaraço--porque sou extremamente modesto.
--Snr. Quartelmar, concluiu o barão, esse sujeito chamado Neville era
meu irmão.
--Ah! exclamei.
Com effeito! Agora, agora recordava eu bem com quem o barão se
parecia! Era com esse Neville. Sómente o outro tinha menos corpo, e a
barba escura. Mas nos olhos havia a mesma franqueza, e havia a
mesma decisão.
--Era meu irmão, continuou o barão. Meu irmão mais novo, e unico.
Até aqui ha cinco annos, vivemos sempre juntos. Depois um dia,
desgraçadamente, tivemos uma questão, uma terrivel questão. E, para
lhe dizer a verdade toda, snr. Quartelmar, eu comportei-me para com
meu irmão da maneira mais injusta! Foi sob o impulso do despeito, da
cólera, é certo... Mas em summa comportei-me injustamente.
--Cruelmente, murmurou do lado o capitão John, que fumava com os
olhos cerrados.
--Cruelmente, com effeito. Como o snr. Quartelmar sabe, em Inglaterra,
quando um homem morre sem testamento e não tem senão bens de raiz,
tudo passa para o filho mais velho. Ora succedeu que meu pai morreu
exactamente quando meu irmão Jorge e eu estavamos assim de mal.
Herdei tudo; e meu irmão, que não tinha profissão, nem habilitações,
ficou sem real. O meu dever, está claro, era crear-lhe uma situação
independente. É o que todos os dias se faz em Inglaterra, n'esses casos.
Mas por esse tempo a nossa questão estava em carne viva. Eu não lhe
offereci nada. Elle tambem, orgulhoso, sobretudo brioso, nada pediu.
Assim ficámos, de longe, eu rico e elle pobre... Peço perdão de o fatigar
com estes detalhes, snr. Quartelmar, mas preciso pôr as coisas bem
claras... Não é verdade, John?
--Escrupulosamente claras! acudiu o outro. De resto o nosso amigo
Quartelmar guarda para si esta historia...

--Pudera! exclamei.
--Pois bem, continuou o barão, meu
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