As Minas de Salomão | Page 3

H. Rider Haggard
nas docas á espera do paquete de Inglaterra, o Edinburgh
Castle. Tomei passagem, e fui para bordo. N'essa tarde chegou o
Edinburgh Castle: os passageiros que trazia para o Natal transbordaram
para o Dunkeld, e levantamos ferro ao pôr do sol.
Entre os passageiros de Inglaterra, que mudaram para o Dunkeld, havia
dois que me despertaram logo certo interesse. Um d'elles, um
homemzarrão de perto de trinta e cinco annos, tinha os hombros mais
cheios e os braços mais musculosos que eu até ahi encontrára, mesmo
em estatuas. Além d'isso cabellos ondeados e côr d'ouro; barbas
ondeadas e côr d'ouro; feições aquilinas e de córte altivo; olhos pardos,
cheios de firmeza e de honestidade. Varão esplendido que me fez
pensar nos antigos Dinamarquezes. Para dizer a verdade,

Dinamarquezes só conheci um, moderno, horrivelmente moderno, que
me estafou dez libras: mas lembro-me de ter admirado um quadro, os
Antigos Dinamarquezes, em que havia homens assim, de grandes
barbas amarellas e olhos claros, bebendo n'um bosque de carvalhos por
grandes cornos que empinavam á bôca. Este cavalheiro (vim a saber
depois) era um Inglez, um fidalgo, um baronet. Chamava-se Curtis--o
barão Curtis. E o que me feriu mais foi elle parecer-se extremamente
com alguem, que eu encontrára no interior, para além de Bamanguato.
Quem?... Não me podia lembrar.
O sujeito que vinha com elle pertencia a um typo absolutamente
differente, baixo, reforçado, trigueiro, e todo rapado. Calculei logo
pelas suas maneiras que tinhamos alli um official de marinha; e
verifiquei depois, com effeito, que era um primeiro tenente da Armada
Real, reformado em capitão-tenente, e por nome John Good. Esse
impressionou-me pelo apuro. Nunca conheci ninguem mais escarolado,
mais escanhoado, mais engommado, mais envernizado! Usava no olho
direito um vidro, sem aro, sem cordel, e tão fixo que parecia natural
como a palpebra. Nem um só momento o surprehendi sem aquelle
vidro, e cheguei mesmo a pensar que dormia com elle cravado na orbita.
Só muito tarde descobri que á noite o mettia no bolso das calças--no
mesmo bolso em que guardava a dentadura postiça, a mais bella, a mais
perfeita dentadura que me recordo de ter contemplado, mesmo em
annuncios de dentistas. E o capitão, d'estas, possuia duas!
Apenas nos fizemos ao largo, começou o mau tempo. Brisa forte, nevoa
humida e fria. Depois cada solavanco (o Dunkeld, barco de fundo chato,
não levava carga) que não se podia arriscar uma passada confortavel na
tolda. De sorte que me recolhi para junto da machina, onde fazia um
calorzinho sereno, e alli fiquei olhando para o pendulo, que marcava,
com desvios largos, o angulo de balanço do Dunkeld.
--Pendulo errado, rosnou de repente uma voz ao meu lado, na sombra
da noite que cahia.
Olhei. Era o official de marinha.
--Errado, hein?... Acha? perguntei.

--Acho o que?... Se o vapor se inclinasse quanto marca o pendulo, não
se tornava mais a levantar... Aqui está o que eu acho. Mas é sempre
assim, com estes capitães de marinha mercante...
Felizmente, n'esse instante, tocou a sineta ao jantar, com immenso
allivio meu--porque se ha, sob a cupula dos céos, uma coisa temerosa, é
a loquacidade d'um official da marinha de guerra, desabafando sobre a
inepcia dos officiaes da marinha mercante. Peor do que essa coisa
temerosa--só a coisa inversa!
O capitão John e eu descemos juntos para o salão. O barão Curtis já lá
estava, no topo da mesa, á direita do commandante do Dunkeld. John
accommodou-se ao lado do seu companheiro: eu defronte, onde havia
dois talheres desoccupados. Logo depois da sopa o commandante, com
a lamentavel mania dos homens de mar, começou a fallar de caça.
Primeiramente de caça miuda, de condores e de abutres. Depois passou
a elephantes.
--Ah! commandante (exclamou ao lado um patricio meu, de Durban),
para elephantes temos presente uma grande auctoridade... Se ha homem
em Africa que entenda de elephantes é aqui o nosso companheiro e
amigo Allão Quartelmar.
Por acaso, n'esse momento, eu pousára os olhos no barão Curtis; e notei
que o meu nome, assim pregoado com a minha profissão, lhe causára
emoção e surpreza. John cravou tambem em mim o seu vidro, com uma
curiosidade que faiscava. Por fim o barão inclinou-se, através da mesa,
e n'uma voz grave e funda, bem propria do robusto peito d'onde sahia:
--Peço perdão, disse, mas é porventura ao snr. Allão Quartelmar que
me estou agora dirigindo?
--A elle proprio.
O homemzarrão passou a mão pelas barbas,--e distinctamente, muito
distinctamente, o ouvi murmurar: «Ainda bem!»
Não se passou mais nada até ao dôce. Mas fiquei ruminando aquelle

espanto e aquelle «ainda bem!»
Depois do café, enchia o meu cachimbo para subir á tolda, quando o
barão, com os seus modos sérios e lentos, se adiantou para mim, e me
convidou «a passar ao seu beliche, tomar um grog, e conversar...»
Aceitei.
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