constantemente haver em logar de ter, não só nos casos em que esse
verbo é usado como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de
possuir. Acatamos discretamente as rasões de pundonor e de dignidade
que possam ter levado este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes
com o verbo ter. O simples depoimento do verbo haver, conjugado
com tanta lealdade, cravado no discurso com tanta firmeza como
aquella que se admira em todas as locubrações litterarias d'este auctor,
basta para nos convencer da innocencia de Leonor.
Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça
são de um caracter fortuito absolutamente illibado.
A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo
bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no
momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo
bastidor á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos
meditando no verbo haver, e descarregam um sobre o outro o objecto
das suas cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos:
Duqueza--Houveste alfim volvido?
Pagem--Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me?
Duqueza--Nada hei.
Pagem--Hão, quiçá, offendido-vos outra vez?
Duqueza--Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D.
Theodosio.
Pagem--Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se
cumprir vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a... Manhã, ao
toque de prima, serei partido. De nada mais heis mister?
Duqueza--De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de
haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha.
Pagem--Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou.
(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)
A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado
com a duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça,
finalmente, a duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples
ôlho, tem para Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se
presinta de leve que seja a exhalação da perfidia.
* * * * *
O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como
vamos ver.
BEATRIZ ANNES
Grande mal, grande mal, senhor Fernão!
FERNÃO RODRIGUES
Que mal?
BEATRIZ ANNES
Homem em casa.
FERNÃO RODRIGUES
Com a aia?
BEATRIZ ANNES
Não.
FERNÃO RODRIGUES
Com quem pois?
BEATRIZ ANNES
Com nossa ama.
O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem
aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras:
PAGEM
_Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio Em vertigem de amor! Sinto a
poesia Na mente distillar grata ambrosia. Ó senhora duqueza! Minha
vida! Como vos amo!_
LEONOR
Antonio! alma querida...
PAGEM
_Longe de vós a vida é-me desterro... Perdoar-me-heis do coração este
erro?_
LEONOR
Sim.
PAGEM
_Sem vos escutar e sem vos ver Não podia, senhora, mais viver! Meu
peito abrasa._
LEONOR
_Doce pensamento, Longe de ti é egual o meu tormento._
E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica
perfeitamente calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o
Alcoforado:
_Calae-vos por piedade! Tende imperio Sobre a imaginação._
Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem,
á hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de
um sentido decisivo:
_Como evitar que o duque venha, e veja Aqui tua presença que me
peja?_
PAGEM
Meu Deus!
LEONOR
Jesus! esconde-te!
Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos
persuadem, replica energicamente:
Fujamos!
LEONOR
Por onde oh! ceus?
PAGEM
Por esta porta.
LEONOR
Vamos.
Sendo tanto a Leonor de Bragança do sr. Luiz de Campos como a
_Leonor de Bragança_ do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos
seus auctores a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas
devem ser consideradas pela critica não como livres producções
litterarias mas como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança.
Ora sob este ponto de vista--não hesitamos em dizel-o--a obra do sr.
Ansúr parece-nos muito mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de
Campos.
Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente
aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com
o testemunho dos documentos que manuseou: _A historia genealogica,
As Decadas de Couto e de Barros, a Chronica de D. Manuel_ por
Damião de Goes e o Auto de inquirição e devassa existente na Torre do
Tombo. O sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos
documentos por elle compulsados.
Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a
duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois
uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e
fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada.
Segundo o sr.
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