As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 5

Ramalho Ortigão
Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro
infeliz em familia, ao qual succede--como muito bem diz Menelau na
Bella Helena--uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da
duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade

offendida e ao abrigo das leis do reino.
Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque
não passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de
familia e a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço
de sangue innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o
pagem Alcoforado, com o mesmo facalhão com que se picam os bifes,
é um facto indecente que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos,
estabelece um precedente que pode levar os servidores da casa de
Bragança a não distinguirem inteiramente a differença que ha em ir
para o paço e em ir para a salgadeira.
Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar
sem nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura
da peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar
D. Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de
Africa. Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe
que faz das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica
pelas necessidades ordinarias da vida exterior.
* * * * *
Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o
publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica
cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a
condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de
apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua.
Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a
offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime
por uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em
casa. Com a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza
e de concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um
immenso clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino
destinado á perfuração das damas.
Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal
desengano:

_Horror! Infamia! Anathema! Vergonha! .......................................
Rompe-se-me do ser toda a harmonia, Passa-se-me na mente extranha
orgia! Estalam-me no corpo algumas fibras! Meu pobre espirito, que
assim te libras Do desespero na mortal esphera, Não te consumas tanto!
Acalma! Espera! ......................................... Mofina dor me roe, me
despedaça! Emquanto descuidoso andara á caça, Tu deliravas... tu... oh!
que villeza!_
E depois dirigindo-se ao pagem:
_Arrepende-te dos teus peccados Que os fios da tua vida estão
contados!_
PAGEM
Perdão! piedade!
DUQUE
_Soffre com valor Que mais soffreu par nós o
Redemptor! ..................................... .........................Alfim Com o
manchil Domingos cortará A cabeça do pagem. Morrerá._
A duqueza intervem com esta conceituosa mas intempestiva maxima:
_Jamais decepes com manchil odioso A cabeça de um justo. É
horroroso!_
O duque não precisa que lhe ensinem a resposta...
_Sabe mostrar do Barbadão de Veiros O descendente, como pune o
ultraje, Que lhe fizeste, Leonor! Apage._
Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á
clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de
Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e
em noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso
que, presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma
commoção profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da

mãe de D. Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio
solio?
_Omnipotente Deus! quiz o destino Dar existencia ao throno manuelino!
Quem predissera tal, filho cadete, Quando surgiste á luz em
Alcochete?!_
Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço
da casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o
sr. Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta
familia:
_A não ser o real, não ha poder, Que possa hoje nos reinos exceder O
de nosso senhor! Póde D. Jayme (Ó fóros brigantinos inspirae-me) Nas
salas dos seus paços ter doceis E sitiaes nas egrejas dos fieis. Forrada
com arminhos, rica, larga Vestir opa vermelha aberta á ilharga; Ante si
leva estoque, segundo acho, Com o extremo voltado para baixo,
Distinctivo dos reis, que é para cima._
Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em
cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de
levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar
estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos
acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e
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