As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 6

Ramalho Ortigão
reporters
sentimentaes, o diligente esforço humanitario empregado para arrancar
da caridade o remedio supremo do grande mal é uma simples
ostentação insensata e ridicula. Se são verdadeiras as informações que

os jornaes vagamente nos transmittem das desgraças provenientes da
inundação do Tejo e do Guadiana, n'esse caso a questão não se resolve
pela caridade particular mas sim pela assistencia publica.
Porque--reflictamos um momento--ou existe esse conjuncto harmonico
de instituições solidarias e responsaveis chamado o Estado, ou não
existe.
Se não existe, em nome de que principio nos estão aqui a impôr o
serviço militar, o exercito, as barreiras, as alfandegas, o funccionalismo
e a lista civil?
Se o Estado existe, o que é para elle o lnundado? O Inundado é o
productor e é o contribuinte. Agricultando o seu campo, creando o
cavallo, engordando o boi, creando o porco, tosquiando a ovelha,
pisando a azeitona, podando a cepa, descaseando o sobreiro, o
Inundado desde tempos immemoraveis que não faz mais do que estas
duas coisas: produz e paga.
Nós outros, habitantes do Chiado, assignantes de S. Carlos, socios do
Gremio e do Club, frequentadores do Martinho e do Passeio Publico,
nós, republicanos, regeneradores ou granjolas, commendadores de
Christo e mesarios da confraria das Chagas, nós outros não produzimos
e por conseguinte, em rigor, tambem não pagamos.
Funcionnerios publicos, capitalistas, banqueiros, ministros, oradores,
poetas lyricos, jogadores na bolsa, proprietarios de predios, vendedores
de bilhetes de loteria, consumidores insaciaveis de charutos, de copos
de cerveja, de dobrada com hervilhas e de bolos de especie,--nós,
francamente, não produzimos coisa nenhuma qae signifique dinheiro,
isto é, trabalho crystalisado, obra, ou, por outra, valor. Somos
apenas--mais ou menos legitimamente--os usufrutuarios, os
administradores officiosos ou officiaes do dinheiro dos outros.
Portanto, como acima dissemos, nóa outros, como não produzimos, em
rigor tambem não pagamos. Aquillo que alguns suppomos pagar é
apenas uma parte que se nos deduz n'aquillo que recebemos. Quem em
ultima analyse vem a pagar é unica e simplesmente o Inundado,

queremos dizer o productor, o que planta o trigo, o bacelo, a oliveira e
o sobro, o que cega a cevada e apanha a bolota, o que carda a ovelha,
cria o boi, o cavallo, o porco e o carneiro, o que dá a cortiça, o mel, a
cebola, o pão, o vinho, o azeite, o sal, o figo, a amendoa e as laranjas.
É elle, o Inundado, quem até hoje tem pago o subsidio de S. Carlos, as
carruagens dos ministros, os cavallos dos correios de secretaria, as
purpuras dos nossos reis, as toilettes das nossas dançarinas, os
penachos do nosso exercito, a campainha e o copo d'agua dos nossos
parlamentos, finalmente toda a despeza de administração, de pompa, de
luxo e de força, cujo conjuncto constitue a coisa chamada o Estado.
Como foi que o Estado resolveu o Inundado a pagar-lhe as suas contas?
O Estado resolveu-o fazendo-lhe o seguinte discurso:
Inundado! Você trabalha como um boi de nora, o que o não impede de
ser um infeliz e um estupido. Eu sou o Estado. Proponho-me dar-lhe a
felicidade material, intellectual e moral, cujos elementos lhe faltam, e
que v. não sabe nem póde constituir sem mim. Você não sabe lêr nem
escrever, você não sabe trabalhar, não sabe prevêr, não sabe
economisar. Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a
policia rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe
ensine os novos processos agricolas e lhe empreste as grandes
machinas de trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem
canalisação nos seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de
aperfeiçoamento e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se
chama o systema monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e
doze homens, sendo seis ministros e seis correios a cavallo, um
parlamento, composto de duas camaras, uma electiva e outra hereditaria.
Quer você ou não quer a civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e
eleja um deputado que vá á minha camara electiva pedir por boca em
seu nome tudo o que você appeteça. Em troca d'este enorme serviço
que eu lhe presto ha de você resignar-se a pagar-me um imposto annual,
que eu cá mandarei cobrar pelo escrivão de fazenda, e cuja importancia
applicarei a regalal-o e a divertil-o summamente com um exercito, uma
côrte, um sceptro, varias duzias de repartições publicas, um theatro, um
Diario das Camaras, um arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc.,

etc.
O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a
dispender. Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços.
O Inundado, porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica,
nem a bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas,
nem as grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação,
nem os trabalhos
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