As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 5

Ramalho Ortigão
do
sonho symbolico das vaccas magras e das vaccas gordas,
demonstrando-se como aos annos de estiagem e de fome succedem
annos compensadores de irrigação e de abundancia.
Debalde a historia nos mostra que foi das inundações dos grandes rios
que saiu a iniciação dos grandes progressos humanos; que foi das
inundações do Nilo que procedeu a civilisação do Egypto; das
inundações do Hoang-Ho que procedeu a civilisação da China; das
inundações do Euphrates, que procedeu a civilisação da Caldea, da
Babilonia e da Syria. Povos na infancia, desprovidos das lições da
experiencia, desarmados dos instrumentos da analyse moderna,
souberam fundar a sua vida historica na previsão industrial e na
previsão economica das cheias dos seus rios.

Nós, portuguezes, em pleno seculo XIX, na posse dos mais importantes
segredos da mechanica, da astronomia, da physica, da chimica, nós,
filhos de Kepler, de Galileu, de Newton e de Francklin, nós,
contemporaneos de Mayer, de Helmboltz, de Virchow, de Haeckel, de
Humboldt, e de Wourtz, de Ampere, de Leverrier, nós, não sabemos
tirar das inundações successivas de um rio que vem de annos a annos,
periodicamente, contra nossa vontade, fertilisar os nossos campos,
nenhuma das lições que a experiencia devia suggerir-nos para
regularmos e utilisarmos em nosso proveito a acção violenta d'esse
phenomeno!
Ha perto de trezentos annos que um velho naturalista, um modesto
oleiro, um simples, um santo, Bernardo Palissy, ensinou a construir as
fontes artificiaes, fazendo passar as aguas da chuva atravez de um
pequeno trato de terreno arborisado sobre um declive de cimento
argiloso, terminando n'um muro de supporte que se corta no ponto em
que se colloca a fonte e onde se deseja que a chuva, armazenada no
inverno entre as raizes do pomar plantado na encosta de subsolo
sedimentado, venha a correr no verão em bica de agua mineralisada e
limpida. Ha trezentos annos que isto se ensinou. Em Portugal, onde a
chuva torrencial é um facto de quasi todos os invernos, onde a falta de
agua potavel é um facto de quasi todos os verões, ainda ninguem
aprendeu a construir a fonte de Palissy!
Em Lisboa cairam alguns muros e desabaram algumas casas. Se um
ligeiro abalo de terra se tivesse seguido ás grandes chuvas é natural que
muitos outros predios aluissem, porque a grave questão das edificações
em Lisboa está absolutamente despresada e abandonada á rotina do
velho systema adoptado pelo marquez de Pombal. Ora esse systema,
aliás excellente no tempo da reedificação subsequente ao terremoto, é
hoje imperfeito e perigoso. A canalisação da agua e as chaminés dos
fogões de sala vieram modernamente alterar os dados do problema
resolvido pela sabia administração pombalina. Os andaimes de madeira
geralmente adoptados para sustentar os soalhos e os tectos ou
apodrecem rapidamente ao contacto dos canos da agua que envolvem
os predios ou se carbonisam por effeito do calor que lhes communicam
os tubos das chaminés. A elasticidade que se tem em vista obter para

evitar os desabamentos procedentes dos terremotos, substituindo os
madeiramentos pela pedra, só poderia conseguir-se, sem perigo do
apodrecimento ou da carbonisação, empregando nas construcções
modernas o ferro em vez do pau. Esta modificação tão facil, tão
economica, tão urgentemente exigida nos novos systemas de edificar, o
nosso desleixo nacional não nol-a tem deixado ensaiar. De modo que a
mesma previsão do perigo discorrida pelo unico homem que acordou
em Portugal por occasião do grande tremor de terra com que á natureza
benigna approuve tentar acordar-nos, essa mesma a nossa indolencia e
a nossa incuria conseguiu converter dentro de poucos annos em mais
uma causa de destruição e de aniquilamento!
Do regimen torrencial dos rios, da arborisação das montanhas, dos
côrtes transversaes das vertentes, da construcção dos tubos de
drenagem, das applicações da draga, dos diques moveis organisados
por meio das grandes caixas de ferro fundido, caixas que boiam na agua
em quanto vasias e que um pequeno vapor munido do um cabo de
reboque poderia conduzir aos centos sobre o Tejo para os pontos da
margem que conviesse resguardar pelo pequeno espaço de tempo
necessario para evitar o perigo, quasi momentaneo, das inundações, do
emprego finalmente de qualquer dos muitos meios conhecidos para
dominar as cheias ou para utilizar as chuvas, ninguem se occupa--nem
o governo que assiste ao espectaculo commodamente sentado nos seus
fauteuils de orchestre e applica á marcha dos successos o seu binoculo
de dilettanti correcto, imperturbavel, nem o parlamento, nem a
imprensa, nem finalmente o paiz!
* * * * *
A crise economica não nos parece ter sido objecto de cuidados mais
serios do que aquelles que cercaram a questão hydraulica. Ou é certo ou
não é que a inundação do Tejo e os temporaes que concorreram com
ella destruíram as casas, devastaram os campos, reduziram povoações
inteiras á miseria e á fome. Se isto é uma pura invenção dos
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