As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes | Page 3

Ramalho Ortigao
Revolu??o o dogma do dever social, viveram combatendo at�� �� ultima hora e morreram com a penna na m?o.
Ha poucos dias ainda a Fran?a viu cair Thiers na estacada, em pleno combate. Era um velho pequenino, valetudinario, quasi rachitico. Desde muito tempo que elle era sufficientemente rico para gosar a tranquilidade egoista, imperturbavel, do mais poderoso principe. A sua longa vida f?ra uma serie nunca interrompida de combates, de derrotas, de triumphos, das mais violentas commo??es que podem opprimir e dilacerar uma alma. Ha dez annos que poucos teriam como elle o direito de solicitar um pouco de tranquilidade e um pouco de sombra. Elle todavia permanece no ponto mais temeroso da peleja, e �� a essa pertinacia d'um s�� homem, t?o debil e t?o caduco que qualquer mulher poderia pegal-o ao collo e adormecel-o como um baby, que a Fran?a deve a sua reconstitui??o politica e social, e a democracia a affirma??o mais poderosa e mais energica d'uma republica no cora??o da Europa.
Na Inglaterra, n?o j�� um homem mas uma simples mulher, que teve um papel decisivo no movimento das id��as modernas, Miss Martineau, ferida por uma les?o do cora??o, desenganada pela medicina de que n?o pode ter mais d'um anno de vida, concentra durante esse anno todas as suas faculdades na conclus?o da sua ultima obra, conta a uma por uma em beneficio do seu similhante as suas derradeiras pulsa??es, e sob uma condemna??o mais peremptoria e mais tremenda que a de Condorcet, arranca da sua invencivel vontade a energia precisa para escrever com a lucidez mais profunda, com a firmeza mais viril, com a coragem mais heroica, o admiravel livro em que dep?e com a ultima palavra o ultimo suspiro.
Uma celebridade subalterna, um simples poeta, um romancista, um talento d'especialidade, tem o direito de fazer um livro e de se calar para todo o sempre; mas o cidad?o em quem concorrem as multiplas aptid?es cerebraes que constituem os espiritos superiores, as capacidades dirigentes, n?o tem esse direito.
A benevolencia devida aos vivos p��de levar-nos a respeitar nos actos de cada homem um producto indiscutivel da sua liberdade; a verdade por��m devida aos mortos, a incorruptivel verdade, tem diante dos tumulos o dever de considerar, em nome da justi?a e em nome da sociedade, todas as condi??es que encaminharam ou desencaminharam uma existencia n'essa linha ideal a que convergem as mais altas aspira??es da humanidade.
E �� s�� assim que as gera??es aprendem o que t��em de agradecer e o que t��em de perdoar aos obreiros do passado, tirando d'esse juizo austero sobre a miss?o dos que morreram, a regra moral a que t��em de submetter-se aquelles que est?o vivos.
A elabora??o psychologica das causas que levaram o espirito de Herculano a quebrar as suas rela??es mentaes com a sociedade, �� um importante estudo a que se acham obrigados aquelles que viveram na intimidade e na confidencia do grande escriptor. A sociedade precisa de saber que grau de responsabilidade lhe cabe no emudecimento d'essa voz. Porque a isola??o d'Herculano n?o �� um simples episodio biographico, �� um facto social, �� um dos mais tristes phenomenos da decadencia portugueza.
O exemplo do solitario de Valle de Lobos ser�� profundamente nocivo, se n?o for cabalmente explicado como uma fatalidade sociologica.
Todos aquelles que trabalham com dedica??o e com honra, que se consideram responsaveis diante dos seus similhantes pela conclus?o do trabalho que a si mesmos se impuzeram, que se dedicam �� sua miss?o, que v��em n'ella uma parte integrante da grande obra collectiva da humanidade, todos aquelles que teem na vida um fito superior e desinteressado, est?o sujeitos em cada dia, em cada hora, em cada instante, �� grande lucta da consciencia com as suggest?es do egoismo, com a ingratid?o dos homens, com a calumnia, com a trai??o, com o desdem. �� perigoso para os que teem ainda, no meio da dissolu??o geral dos caracteres, esse vivo sentimento da solidariedade, essa corajosa dedica??o do martyrio, essa persistencia no lento suicidio que �� a vida de todos os que pensam e de todos os que luctam, o ver de repente sossobrar e afundir-se na fria impassibilidade e na tenebrosa indifferen?a o alto luminar destinado a indicar a uma gera??o inteira o arduo e penoso rumo do dever.
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Lemos em um jornal que a imprensa de Lisboa, reunida em assembl��a para o fim de pagar �� memoria de Alexandre Herculano o tributo da sua admira??o, resolvera abrir uma subscrip??o destinada a elevar um monumento ao insigne escriptor. Parece, segundo o mesmo boato, que n?o est�� ainda resolvido de que natureza ser�� o monumento em projecto.
Se tivessemos a immerecida honra de sermos considerados pela imprensa como um de seus membros, eis o que proporiamos.
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A obra monumental, posto que ainda incompleta do finado escriptor, a sua Historia de Portugal, �� possivel que
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