As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1882-11/12) | Page 4

Ramalho Ortigão
o numero dos adherentes era de 3:000. Na cathedral de
Saint-Rombaut, o cardeal-arcebispo Sterchx celebrou a missa solemne
d'abertura, depois da qual os membros do congresso seguiram em
procissão para a vasta sala das sessões, engrinaldada de festões de rosas
e empavesada de tropheus de todas as bandeiras da christandade como
uma enorme nau em triumpho. No topo do salão o estrado destinado á
meza era coberto por um docel de velludo carmesim franjado d'ouro
sobre o qual se destacava na doce pallidez do marfim uma imagem de
Jesus cravado de brilhantes na cruz d'ebano. Esveltos soldados da
milicia papal, em grande uniforme, de capacetes rutilantes e bigodes
recurvos, fazem alas lendo ao tiracollo as bandas symbolicas de seda
branca e ouro. O alto clero que vem tomar assento na assembleia passa
em pompa, gravemente, por cima do tapete de Smirna desenrolado ao

longo da sala. Á frente, os cardeaes com as suas purpuras roçagantes;
depois os bispos inglezes, os de Gand, de Tournay, de Namur,
appoiados aos seus baculos, e os sacerdotes do rito armenio, de grandes
barbas, chapeus altos sem abas com veus roxos, empunhando as suas
longas bengalas de castão de ouro.
Foi no congresso de Malines que De Montalembert, o antigo
collaborador do abbade Lamennais, proferiu o seu monumental
discurso sobre a egreja livre no estado livre. De Montalembert
acreditava ainda na possibilidade de uma alliança entre o espirito
ecclesiastico e o espirito scientifico do mundo moderno, e o seu
discurso é n'esse intuito um manifesto de uma rara eloquencia
apaixonada, profundamente convicta.
«Em toda a parte excepto na Belgica--disse elle--os catholicos são
inferiores aos seus adversarios na vida publica, porque os catholicos
não souberam ainda congrassar-se com a grande revolução que gerou a
nova sociedade, a moderna vida dos povos. Em presença da sociedade
moderna os catholicos sentem-se timidos e confusos; teem-lhe medo.
Não aprenderam por emquanto a conhecer, a amar a sociedade em que
vivem. Muitos estão ainda, pelo coração e pelo espirito, ligados ao
antigo regimen, isto é, a um systema que não admittia nem a egualdade
civil, nem a liberdade politica, nem a liberdade de consciencia. O
antigo regimen tinha o seu lado grande e bello; não pretendo julgal-o
aqui, e muito menos pretendo condemnal-o. Basta-me reconhecer-lhe
um deffeito, mas esse capital: está morto, e nunca mais resuscitará.»
Em seguida Montalembert demonstra que n'este seculo a egreja ou ha
de cessar de existir ou ha de viver na democracia e na liberdade. A
egreja, ou não tem mais que fazer no mundo, ou tem que contribuir
ainda como nos tempos que fizeram a gloria do seu passado, para a
perfectibilidade do espirito humano, intervindo no progresso pelo
combate da livre razão contra todas as usurpações, contra todos os
privilegios, contra todas as tyrannias exercidas sobre a inviolavel
fraternidade humana.
A liberdade é uma só, unica, indivisivel e sagrada, expressa pelo
predominio dos poderes espirituaes sobre os poderes temporaes,

representada na parte dynamica pela sciencia, na parte statica pela
religião.
Na sciencia a liberdade consiste no direito de descobrir a verdade e de a
proclamar sem disfarce e sem restricção alguma como base das
relações do homem com o homem na independencia absoluta da
revelação e da fé. Na religião a liberdade consiste, como dizia Guizot,
no direito que tem a consciencia humana de não ser governada nas suas
relações com Deus por decretos ou por castigos humanos.
«Catholicos--disse Montalembert--se quereis a liberdade para vós,
entendei-o bem, é preciso que a queiraes egualmente para todos os
homens e debaixo de todos os ceus. Se a pedirdes para vós unicamente,
não a tereis nunca: dae-a em toda a parte onde fordes senhores para que
vol-a deem em toda a parte onde fordes escravos.»
Esta energica apologia da liberdade, enthusiasticamente applaudida,
levou o congresso de Malines a ridigir nos seguintes termos uma das
resoluções da assembleia: «É do interesse dos catholicos, assim como
do todos os cidadãos que sinceramente querem a liberdade, o substituir
quanto possivel a intervenção e a omnipotencia do estado pela energia
creadora e pelo principio expansivo do espirito de associação.»
* * * * *
Vejamos agora quaes foram os resultados praticos d'esse grande
impulso de eloquencia destinada a fazer entrar o catholicismo no
movimento liberal da moderna civilisação. Os destinos da egreja n'este
fim do seculo XIX estão profundamente ligados a esse facto culminante
na historia das ideias clericaes.
O que succedeu no congresso de Malines foi que os cardeaes e os
bispos abandonaram a reunião no dia immediato áquelle em que
Montalembert fizera o elogio da alliança da egreja catholica com a
sciencia e com a liberdade.
Compareceram apenas nas sessões subsequentes os membros obscuros
do baixo clero, os quaes movidos de um generoso impulso democratico

continuavam a applaudir Montalembert, não sem perguntarem a si
mesmos com certa inquietação o que se
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