As Farpas (Junho 1883) | Page 4

Eça de Queiroz Ramalho Ortigão
raz?o: se os aulicos conselheiros da guarda-roupa de vossa alteza, se n��s, seus criticos.
Mais tarde quando vossa alteza penetrou nos dominios da instruc??o secundaria, e que de Coimbra foi chamado por cartas regias o mestre de hebraico Joaquim Alves Sousa para o fim de vir ler a vossa alteza Logica e Rhetorica, As Farpas apoderaram-se solicitas e velozes d'esse sapiente caturra, e provaram por meio de argumentos irrespondiveis que era abusar da submiss?o de um jovem principe, innocente e ingenuo, o p?r defronte d'elle, sob o pretexto de o instruir, esse agoirento mocho, pilhado na lobrega escurid?o da metaphysica universitaria, e posto na Ajuda, com a borla doutoral a um lado e o comedouro do rap�� ao outro, a explicar as regras do enthimema, do epicherema e do sorites, e bem assim o emprego da synedoche, da antonomasia e da catachrese.
Apesar de todas as nossas objec??es, esse nefasto humanista amargurou os dias preciosos de vossa alteza, procurando cavilosamente fazer-lhe acreditar que o epicherema era t?o indispensavel ao homem como o proprio p?o.
Se tinhamos ras?o ou n?o sabe-o hoje muito bem vossa alteza, que �� homem ha uns poucos d'annos sem ter precisado nunca at�� hoje nem do epicherema nem do sorites nem de coisa alguma d'aquellas com que por tanto tempo o estopou, sem proveito para ninguem, esse semsabor?o tremebundo, seu mestre.
Quando foi da nomea??o do snr conselheiro Viale, do snr Martens Ferr?o, do snr Santa-Monica, As Farpas intervieram de novo, constatando que a educa??o de vossa alteza n?o era precisamente a piscina da pudica Susana, para assim a rodearem em grupo mythologico de todos os velhos bar-ba?as aposentados da magistratura e da academia.
Os resultados confirmaram quanto por essa occasi?o predissemos. Os pedagogos de vossa alteza educaram-o dentro da virtude mas f��ra da natureza, fazendo de vossa alteza uma especie de rosi��re de Nanterre, cuja vida tivesse por fim servir de assumpto a um romance coroado pelas sociedades sabias e destinado a conferir-se em premio de anima??o ��s engommadeiras virtuosas.
Conhece vossa alteza a Educa??o de um principe, de Edmond About? Recommendamos-lhe com empenho a leitura d'essa obra t?o importante aos principes como o proprio livro de Machiavel.
Em li??o digna das nossas mais graves medita??es, About mostra-nos a tragica situa??o do principe Paulo no primeiro dia do seu noivado.
�� alta noite. Findaram as festas do hymeneu em palacio. O monarcha agradeceu n'um bem elaborado speech as manifesta??es geraes do regosijo da c?rte por occasi?o do feliz consorcio do principe herdeiro, applaudindo incondicionalmente as dan?as e as cantatas, e queixando-se apenas de pouca pimenta nos molhos mediocremente incendiarios do real banquete. Os musicos, desencanudadas as flautas, mettido o rabec?o na caixa, e confiados os timbales ao mo?o da real capella, haviam-se retirado a seus tugurios. Os aulicos resonavam enconchados nos catres da regia mans?o. E o commandante da companhia dos vivas, incumbido, mediante a esportula de 3:200 e jantar, de fazer de Povo nos dias de gala, havia terminado os seus trabalhos; o rei, com sua natural affabilidade, havia-lhe dito commovido, batendo-lhe no hombro e metendo-lhe na m?o os 3:200: Obrigado, meu povo! e elle, com o vozeir?o restaurado por duas gemadas, partira �� pressa para ir levantar os vivas �� Republica n'uma manifesta??o de provincia para que estava escripturado.
Tudo pois era silencio e trevas no regio alca?ar, quando o monarcha se ergueu, de chambre e chinelas, no louvavel intuito de espairecer dos duros encargos da publica governa??o espreitando um momento pela fechadura da porta da camara nupcial do principe Paulo e da princeza Margarida. N'isto, ao atravessar na escurid?o o sal?o de baile, mudo, apagado e deserto, catrapuz! Era o rei que ia de cor?a para baixo e de chichelos ao ar por cima de um fauteil, encambulhado n'um homem que dormia sentado ali assim. Gritos de pav?o do monarcha aterrado, e cortez?os em ceroulas que chegam com luzes. Descobre-se que o rei cahira por cima do principe real, que estava noivando sosinho n'uma cadeira com o chapeu de bicos na cabe?a, abra?ado �� espada dos reis seus av��s.
--Que faz voc�� aqui, seu estupido?--lhe perguntou o monarcha com voz acre.
--Eu nano--respondeu o principe sorridente e doce.--Como a princeza Margarida me disse que ia nanar para a sua camara e como eu agora n?o tenho camara para nanar, vim nanar para esta cadeira.
--Chamem os mestres de sua alteza!--bradou o rei iracundo, com um gallo na testa e com os bra?os cruzados no peito.
Um momento depois, como os trez pedagogos comparecessem �� real presen?a, enrolados �� pressa nas togas do professorado, de barretes de dormir, com as competentes pennas de pato aparadas da vespera e mettidas atraz das orelhas, o rei disse-lhes:
--Esse jumento que ahi est��, (e estendendo o seu dedo magnimo, com um largo gesto antigo indicava o principe, vestido de general, de esporas e chapeu armado, que bocejava encostado ao sabre
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