com quanto fosse da fabula, era-lhe avêsso, e vinha
a ser o casamento de Venus e Vulcano. Lembravam-lhe as rêdes que o
ferreiro coixo fabricára para apanhar os deuses adulteros, e
assombrava-se da paciencia d'aquelle marido. Entre si, dizia elle, que,
erguido o véo da perfidia, nem se queixaria a Jupiter, nem armaria
ratoeiras aos primos. A par do bacamarte de Luiz Botelho, que varára
em terra o alferes, estava uma fileira de bacamartes em que o juiz de
fóra era entendido com muito superior intelligencia á que revelava na
comprehensão do Digesto e das Ordenações do Reino.
Este viver de sobresaltos durou seis annos, ou mais seria. O juiz de fóra
empenhára os seus amigos na transferencia, e conseguiu mais do que
ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou
saudades em Villa Real, e duradoura memoria da sua soberba,
formosura e graças de espirito. O marido tambem deixou anecdotas que
ainda agora se repetem. Duas contarei sómente para não enfadar.
Acontecèra um lavrador mandar-lhe o presenle de uma vitella, e
mandar com ella a vacca para se não desgarrar a filha. Domingos
Botelho mandou recolher á loja a vitella e a vacca, dizendo que quem
dava a filha dava a mãe. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um
presente de pasteis em rica salva de prata. O juiz de fóra repartiu os
pasteis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia
como escarneo um presente de dôces, que valiam dez patacões, sendo
que naturalmente os pasteis tinham vindo como ornato da bandeja. E
assim é que ainda hoje, em Villa Real, quando se dá um caso analogo
de ficar alguem com o conteúdo e continente, diz a gente da terra:
«Aquelle é como o doutor brocas.»
Não tenho assumpto de tradição com que possa deter-me em miudezas
da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita
aborrecia a comarca, e ameaçava o marido de ir com os seus cinco
filhos para Lisboa, se elle não sahisse d'aquella intratavel terra. Parece
que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa d'uma
antiguidade, que principia na acclamação de Almacave, desdenhou a
philaucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergonteas pôdres do
tronco dos Botelhos Correias de Mesquita, desprimorando-lhe as sãs
com o facto de elle ter vivido dois annos em Coimbra tocando flauta.
Em 1801 achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita
corregedor em Vizeu.
Manoel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois annos, e frequenta
o segundo anno juridico. Simão, que tem quinze, estuda humanidades
em Coimbra. As tres meninas são o prazer e a vida toda do coração de
sua mãe.
O filho mais velho escreveu a seu pae queixando-se de não poder viver
com seu irmão, temeroso do genio sanguinario d'elle. Conta que a cada
passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o
dinheiro dos livros, e convive com os mais famosos perturbadores da
academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e
provocando-os á luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de
seu filho Simão, e diz á consternada mãe que o rapaz é a figura e o
genio de seu bisavô Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que
déra Traz-os-Montes.
Manoel, cada vez mais aterrado das arremettidas de Simão, sáe de
Coimbra antes de ferias, e vai a Vizeu queixar-se, e pedir que lhe dê
seu pae outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de
cavallaria. De Vizeu parte para Bragança Manoel Botelho, e justifica-se
nobre dos quatro costados para ser cadete.
No entanto Simão recolhe a Vizeu com os seus exames feitos e
approvados. O pae maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da
extravagancia por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu mau
viver com Manoel, e elle responde que seu irmão o quer forçar a viver
monasticamente.
Os quinze annos de Simão tem apparencias de vinte. É forte de
compleição; bello homem com as feições de sua mãe, e a corpolencia
d'ella; mas de todo avêsso em genio. Na plebe de Vizeu é que elle
escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna
eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mórmente do general
Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para elle grangear a
mal-querença de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua
mulher, e tomou parte no desgosto d'ella, e na aversão ao filho. As
irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem elle brincava
puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ella pedia, com meiguices de
criança, que não andasse com pessoas mecanicas.
Finalisavam as ferias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um
de seus criados tinha ido levar a beber os machos, e por descuido ou
proposito deixou quebrar algumas
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