Amor de Perdição | Page 3

Camillo Castello Branco
da villa
esperando o seu conterraneo. Cada familia tinha a sua liteira com o
brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada no
feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que figuravam
na comitiva.
D. Rita, avistando o prestito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua
grande luneta de oiro, e disse:
--Ó Menezes, aquillo que é?!
--São os nossos amigos e parentes que veem esperar-nos.
--Em que seculo estamos nós n'esta montanha?--tornou a dama do
paço.
--Em que seculo?! o seculo tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
--Ah! sim? Cuidei que o tempo parára aqui no seculo doze.
O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeára

grandemente.
Fernão Botelho, pae do juiz de fóra, sahiu á frente do prestito para dar a
mão á nora, que apeava da liteira, e conduzil-a á de casa. D. Rita, antes
de vêr a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olho armado as fivelas de
aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ella depois que os fidalgos de Villa
Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de
entrar na liteira avoenga de seu marido, perguntou, com a mais
refalsada seriedade, se não haveria risco em ir dentro d'aquella
antiguidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não
tinha ainda cem annos, e que os machos não excediam a trinta.
O modo altivo como ella recebeu as cortezias da nobreza--velha
nobreza que para alli viera em tempo de D. Diniz, fundador da
villa--fez que o mais novo do prestito, que ainda vivia ha doze annos,
me dissesse a mim: «Sabiamos que ella era dama da Senhora D. Maria
I; porém, da soberba com que nos tractou, ficamos pensando que seria
ella a propria rainha.» Repicaram os sinos da terra quando a comitiva
assomou á Senhora de Almudena. D. Rita disse ao marido que a
recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.
Apearam á porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do paço
relanceou os olhos pela fachada do edificio, e disse de si para si: «É
uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Cintra, na
Bemposta e Queluz.»
Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha mêdo de ser
devorada das ratasanas; que aquella casa era um covil de feras; que os
tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao inverno;
que os preceitos de uniformidade conjugal não obrigavam a morrer de
frio uma esposa delicada e affeita ás almofadas do palacio dos reis.
Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e
começou a fabrica de um palacete. Escassamente lhe chegavam os
recursos para os alicerces: escreveu á rainha, e obteve generoso
subsidio com que ultimou a casa. As varandas das janellas foram a
ultima dadiva que a real viuva fez á sua dama. Quer-nos parecer que a
dadiva é um testemunho até agora inedito da demencia de D. Maria I.

Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de armas; D.
Rita, porém, teimara que no escudo se abrisse um emblema das suas;
mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do esculptor, e o magistrado
não podia com segunda despeza, nem queria desgostar seu pae,
orgulhoso de seu brasão. Resultou d'aqui ficar a casa sem armas, e D.
Rita victoriosa[2].
O juiz de fóra tinha alli parentella illustre. O aprumo da fidalga
dobrou-se até aos grandes da provincia, ou antes houve por bem
levantal-os até ella. D. Rita tinha uma côrte de primos, uns que se
contentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido.
O mais audacioso não ousava fital-a de rosto, quando o ella remirava
com a luneta em geito de tanta altivez e zombaria, que não será
estranha figura dizer que a luneta de Rita Preciosa era a mais vigilante
sentinella da sua virtude.
Domingos Botelho desconfiava da efficacia dos merecimentos proprios
para cabalmente encher o coração de sua mulher. Inquietava-o o ciume;
mas suffocava os suspiros, receando que Rita se désse por injuriada da
suspeita. E razão era que se offendesse. A neta do general frigido no
caldeirão sarraceno ria dos primos, que, por amor d'ella, arriçavam e
empoavam as cabelleiras com um desgracioso esmero, ou cavalleavam
estrepitosamente na calçada os seus ginetes, fingindo que os picadores
da provincia não desconheciam as graças hippicas do marquez de
Marialva.
Não o cuidava assim, porém, o juiz de fóra. O intriguista que lhe trazia
o espirito em ancias era o seu espelho. Via-se sinceramente feio, e
conhecia Rita cada vez mais em flôr, e mais enfadada no trato intimo.
Nenhum exemplo da historia antiga, exemplo de amor sem quebra entre
o esposo deforme e a esposa linda, lhe occorria. Um só lhe mortificava
a memoria, e esse,
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