Amor de Perdição | Page 5

Camillo Castello Branco
vasilhas que estavam á vez no
parapeito do chafariz. Os donos das vazilhas conjuraram contra o
criado, e espancaram-no. Simão passava n'esse ensejo; e, armado d'um
fueiro que descravou d'um carro, partiu muitas cabeças, e rematou o
tragico espectaculo pela farça de quebrar todos os cantaros. O povoleu
intacto fugira espavorido, que ninguem se atrevia ao filho do
corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justiça á
porta do magistrado.
Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral
que o prendesse á sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas irritada
como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que,
sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pae.
O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se
zangado, e prometteu fazel-o capturar em Coimbra. Como, porém, D.
Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças, e estupido juiz d'uma
rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e
confessou tacitamente que era brutal e estupido juiz.

II.
Simão Botelho levou de Vizeu para Coimbra as arrogantes convicções
da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em
que pozera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda
atordoada d'este, o levantar-se d'aquelle ensanguentado, a bordoada que
abrangia tres a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o
estrepito dos cantaros a final, Simão deliciava-se n'estas lembranças,
como ainda não vi n'algum drama, em que o veterano de cem batalhas
relembra os lourós de cada uma, e esmorece, a final, estafado de
espantar, quando não é de estafar, os ouvintes.
O academico, porém, com os seus enthusiasmos era
incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o
mata-mouros de tragedia. As recordações esporeavam-no a façanhas
novas, e n'aquelle tempo a academia dava azo a ellas. A mocidade

estudiosa, em grande parte, sympathisava com as balbuciantes theorias
da liberdade, mais por presentimento que por estudo. Os apostolos da
revolução franceza não tinham podido fazer reboar o trovão dos seus
clamores n'este canto do mundo; mas os livros dos encyclopedistas, as
fontes onde a geração seguinte bebêra a peçonha que sahiu no sangue
de noventa e tres, não eram de todo ignorados. As doutrinas da
regeneração social pela guilhotina tinham alguns timidos sectarios em
Portugal, e esses de vêr é que deviam pertencer á geração nova. Além
de que, o rancor a Inglaterra lavrava nas entranhas das classes
manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos,
apertado, desde o principio do seculo anterior, com as sôgas de
ruinosos e perfidos tractados, estava no animo de muitos e bons
portuguezes que se queriam antes alliançados com a França, Estes eram
os pensadores reflexivos; os sectarios da academia, porém, exprimiam
mais a paixão da novidade que as doutrinas do raciocinio.
No anno anterior de 1800 sahira Antonio de Araujo de Azevedo, depois
conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de
Portugal. Rejeitaram-lhe as potencias alliadas as propostas, tendo-lhe
em conta de nada os dezeseis milhões que o diplomata offerecia ao
primeiro consul. Sem delongas, foi o territorio portuguez infestado
pelos exercitos de Hespanha e França. As nossas tropas, commandadas
pelo duque de Lafões, não chegaram a travar a lucta desigual, porque, a
esse tempo, Luiz Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão,
negociara ignominiosa paz em Badajoz, com cedencia de Olivença á
Hespanha, exclusão de inglezes dos nossos portos, e indemnisação de
alguns milhões á França.
Estes successos tinham irritado contra Napoleão os animos d'aquelles
que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a
congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os d'esta
parcialidade, na convulsiva e irriquieta academia, era voto de grande
monta Simão Botelho, apesar dos seus imberbes dezeseis annos.
Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e
martyres do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos
de Simão. Diffamal-os na sua presença era affrontarem-no a elle, e
bofetada certa, e pistolas engatilhadas á cara do diffamador. O filho do

corregedor de Vizeu defendia que Portugal devia regenerar-se n'um
baptismo de sangue, para que a hydra dos tyrannos não erguesse mais
uma das suas mil cabeças sob a clava do Hercules popular.
Estes discursos, arremêdo d'alguma clandestina objurgatoria de
Saint-Just, afugentavam da sua communhão aquelles mesmos que o
tinham applaudido em mais racionaes principios de liberdade. Simão
Botelho tornou-se odioso aos condiscipulos que, para se salvarem pela
infamia, o delataram ao bispo-conde, reitor da universidade.
Um dia proclamava o demagogo academico na praça de Sansão aos
poucos ouvintes que lhe restaram fieis, uns por mêdo, outros por
analogia de boças. O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida,
quando uma escolta de verdeaes lhe aguou a escandecencia. Quiz o
orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os braços
musculosos da cohorte do bispo-conde com quem as
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