Amor de Perdição | Page 5

Camillo Castello Branco
prendesse á sua ordem. D. Rita, n?o menos irritada, mas irritada como m?e, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem deten?a, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perd?o do pae.
O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometteu fazel-o capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vingan?as, e estupido juiz d'uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade posti?a da testa, e confessou tacitamente que era brutal e estupido juiz.

II.
Sim?o Botelho levou de Vizeu para Coimbra as arrogantes convic??es da sua valentia. Se recordava os chibantes pormenores da derrota em que pozera trinta aguadeiros, o som cavo das pancadas, a queda atordoada d'este, o levantar-se d'aquelle ensanguentado, a bordoada que abrangia tres a um tempo, a que afocinhava dois, a gritaria de todos, e o estrepito dos cantaros a final, Sim?o deliciava-se n'estas lembran?as, como ainda n?o vi n'algum drama, em que o veterano de cem batalhas relembra os lourós de cada uma, e esmorece, a final, estafado de espantar, quando n?o é de estafar, os ouvintes.
O academico, porém, com os seus enthusiasmos era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragedia. As recorda??es esporeavam-no a fa?anhas novas, e n'aquelle tempo a academia dava azo a ellas. A mocidade estudiosa, em grande parte, sympathisava com as balbuciantes theorias da liberdade, mais por presentimento que por estudo. Os apostolos da revolu??o franceza n?o tinham podido fazer reboar o trov?o dos seus clamores n'este canto do mundo; mas os livros dos encyclopedistas, as fontes onde a gera??o seguinte bebêra a pe?onha que sahiu no sangue de noventa e tres, n?o eram de todo ignorados. As doutrinas da regenera??o social pela guilhotina tinham alguns timidos sectarios em Portugal, e esses de vêr é que deviam pertencer á gera??o nova. Além de que, o rancor a Inglaterra lavrava nas entranhas das classes manufactureiras, e o desprender-se do jugo aviltador de estranhos, apertado, desde o principio do seculo anterior, com as s?gas de ruinosos e perfidos tractados, estava no animo de muitos e bons portuguezes que se queriam antes allian?ados com a Fran?a, Estes eram os pensadores reflexivos; os sectarios da academia, porém, exprimiam mais a paix?o da novidade que as doutrinas do raciocinio.
No anno anterior de 1800 sahira Antonio de Araujo de Azevedo, depois conde da Barca, a negociar em Madrid e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potencias alliadas as propostas, tendo-lhe em conta de nada os dezeseis milh?es que o diplomata offerecia ao primeiro consul. Sem delongas, foi o territorio portuguez infestado pelos exercitos de Hespanha e Fran?a. As nossas tropas, commandadas pelo duque de Laf?es, n?o chegaram a travar a lucta desigual, porque, a esse tempo, Luiz Pinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsem?o, negociara ignominiosa paz em Badajoz, com cedencia de Oliven?a á Hespanha, exclus?o de inglezes dos nossos portos, e indemnisa??o de alguns milh?es á Fran?a.
Estes successos tinham irritado contra Napole?o os animos d'aquelles que odiavam o aventureiro, e para outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os d'esta parcialidade, na convulsiva e irriquieta academia, era voto de grande monta Sim?o Botelho, apesar dos seus imberbes dezeseis annos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e martyres do grande a?ougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de Sim?o. Diffamal-os na sua presen?a era affrontarem-no a elle, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas á cara do diffamador. O filho do corregedor de Vizeu defendia que Portugal devia regenerar-se n'um baptismo de sangue, para que a hydra dos tyrannos n?o erguesse mais uma das suas mil cabe?as sob a clava do Hercules popular.
Estes discursos, arremêdo d'alguma clandestina objurgatoria de Saint-Just, afugentavam da sua communh?o aquelles mesmos que o tinham applaudido em mais racionaes principios de liberdade. Sim?o Botelho tornou-se odioso aos condiscipulos que, para se salvarem pela infamia, o delataram ao bispo-conde, reitor da universidade.
Um dia proclamava o demagogo academico na pra?a de Sans?o aos poucos ouvintes que lhe restaram fieis, uns por mêdo, outros por analogia de bo?as. O discurso ia no mais acrisolado da ideia regicida, quando uma escolta de verdeaes lhe aguou a escandecencia. Quiz o orador resistir, aperrando as pistolas, mas de sobra sabiam os bra?os musculosos da cohorte do bispo-conde com quem as haviam. O jacobino, desarmado e cerrado entre a escolta dos archeiros, foi levado ao carcere academico, d'onde sahiu, seis mezes depois, a grandes instancias dos amigos de seu pae e dos parentes de D. Rita Preciosa.
Perdido o anno lectivo, foi para Vizeu Sim?o. O corregedor repelliu-o da sua presen?a com amea?as de o expulsar de casa. A m?e, mais levada do dever que do cora??o, intercedeu pelo filho, e conseguiu sental-o á mesa commum.
No espa?o de tres mezes fez-se maravilhosa mudan?a nos costumes de Sim?o. As companhias da ralé despresou-as. Sahia
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