Amor de Perdição | Page 4

Camillo Castello Branco
juiz de fóra era entendido com muito superior intelligencia á que revelava na comprehens?o do Digesto e das Ordena??es do Reino.
Este viver de sobresaltos durou seis annos, ou mais seria. O juiz de fóra empenhára os seus amigos na transferencia, e conseguiu mais do que ambicionava: foi nomeado provedor para Lamego. Rita Preciosa deixou saudades em Villa Real, e duradoura memoria da sua soberba, formosura e gra?as de espirito. O marido tambem deixou anecdotas que ainda agora se repetem. Duas contarei sómente para n?o enfadar. Acontecèra um lavrador mandar-lhe o presenle de uma vitella, e mandar com ella a vacca para se n?o desgarrar a filha. Domingos Botelho mandou recolher á loja a vitella e a vacca, dizendo que quem dava a filha dava a m?e. Outra vez, deu-se o caso de lhe mandarem um presente de pasteis em rica salva de prata. O juiz de fóra repartiu os pasteis pelos meninos, e mandou guardar a salva, dizendo que receberia como escarneo um presente de d?ces, que valiam dez patac?es, sendo que naturalmente os pasteis tinham vindo como ornato da bandeja. E assim é que ainda hoje, em Villa Real, quando se dá um caso analogo de ficar alguem com o conteúdo e continente, diz a gente da terra: ?Aquelle é como o doutor brocas.?
N?o tenho assumpto de tradi??o com que possa deter-me em miudezas da vida do provedor em Lamego. Escassamente sei que D. Rita aborrecia a comarca, e amea?ava o marido de ir com os seus cinco filhos para Lisboa, se elle n?o sahisse d'aquella intratavel terra. Parece que a fidalguia de Lamego, em todo o tempo orgulhosa d'uma antiguidade, que principia na acclama??o de Almacave, desdenhou a philaucia da dama do pa?o, e esmerilhou certas vergonteas p?dres do tronco dos Botelhos Correias de Mesquita, desprimorando-lhe as s?s com o facto de elle ter vivido dois annos em Coimbra tocando flauta.
Em 1801 achamos Domingos José Correia Botelho de Mesquita corregedor em Vizeu.
Manoel, o mais velho de seus filhos, tem vinte e dois annos, e frequenta o segundo anno juridico. Sim?o, que tem quinze, estuda humanidades em Coimbra. As tres meninas s?o o prazer e a vida toda do cora??o de sua m?e.
O filho mais velho escreveu a seu pae queixando-se de n?o poder viver com seu irm?o, temeroso do genio sanguinario d'elle. Conta que a cada passo se vê amea?ado na vida, porque Sim?o emprega em pistolas o dinheiro dos livros, e convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os á luta com assuadas. O corregedor admira a bravura de seu filho Sim?o, e diz á consternada m?e que o rapaz é a figura e o genio de seu bisav? Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que déra Traz-os-Montes.
Manoel, cada vez mais aterrado das arremettidas de Sim?o, sáe de Coimbra antes de ferias, e vai a Vizeu queixar-se, e pedir que lhe dê seu pae outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete de cavallaria. De Vizeu parte para Bragan?a Manoel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados para ser cadete.
No entanto Sim?o recolhe a Vizeu com os seus exames feitos e approvados. O pae maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagancia por amor do talento. Pede-lhe explica??es do seu mau viver com Manoel, e elle responde que seu irm?o o quer for?ar a viver monasticamente.
Os quinze annos de Sim?o tem apparencias de vinte. é forte de complei??o; bello homem com as fei??es de sua m?e, e a corpolencia d'ella; mas de todo avêsso em genio. Na plebe de Vizeu é que elle escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna elei??o que faz, Sim?o zomba das genealogias, e mórmente do general Caldeir?o que morreu frito. Isto bastou para elle grangear a mal-queren?a de sua m?e. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto d'ella, e na avers?o ao filho. As irm?s temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem elle brincava puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ella pedia, com meiguices de crian?a, que n?o andasse com pessoas mecanicas.
Finalisavam as ferias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um de seus criados tinha ido levar a beber os machos, e por descuido ou proposito deixou quebrar algumas vasilhas que estavam á vez no parapeito do chafariz. Os donos das vazilhas conjuraram contra o criado, e espancaram-no. Sim?o passava n'esse ensejo; e, armado d'um fueiro que descravou d'um carro, partiu muitas cabe?as, e rematou o tragico espectaculo pela far?a de quebrar todos os cantaros. O povoleu intacto fugira espavorido, que ninguem se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém, incorporaram-se e foram clamar justi?a á porta do magistrado.
Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava ao meirinho geral que o
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