Amor de Perdição | Page 6

Camillo Castello Branco
de casa raras vezes, ou só, ou com a irm? mais nova, sua predilecta. O campo, as arvores, e os sitios mais sombrios e êrmos eram o seu recreio. Nas d?ces noites de estio demorava-se por fora até ao repontar da alva; e aquelles que assim o viam admiravam-lhe o ar scismador e o recolhimento que o sequestrava da vida vulgar. Em casa encerrava-se no seu quarto, e sahia quando o chamavam para a mesa.
D. Rita pasmava da transfigura??o, e o marido, bem convencido d'ella, ao fim de cinco mezes consentiu que seu filho lhe dirigisse a palavra.
Sim?o Botelho amava. Ahi está uma palavra unica, explicando o que parecia absurda reforma aos dezesete annos.
Amava Sim?o uma sua visinha, menina de quinze annos, rica herdeira, regularmente bonita e bem nascida. Da janella do seu quarto é que elle a vira a primeira vez para amal-a sempre. N?o ficara ella incolume da ferida que fizera no cora??o do visinho: amou-o tambem, e com mais seriedade que a usual nos seus annos.
Os poetas cansam-nos a paciencia a fallarem do amor da mulher aos quinze annos, como paix?o perigosa, unica, e inflexivel. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos. O amor dos quinze annos é uma brincadeira; é a ultima manifesta??o do amor ás bonecas; é a tentativa da avesinha que ensaia o v?o fóra do ninho, sempre com os olhos fitos na ave m?e que a está da fronde proxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para longe.
Thereza de Albuquerque devia ser, por ventura, uma excep??o no seu amor.
O magistrado e sua familia eram odiosos ao pae de Thereza, por motivos de litigios em que Domingos Botelho lhe deu senten?as contra. Afóra isso, ainda no anno anterior dois criados de Thadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. Salta aos olhos que o amor de Thereza, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pae, era verdadeiro e forte.
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e fallaram-se tres mezes, sem darem rebate á visinhan?a, e nem sequer suspeitas ás duas familias. O destino, que ambos se promettiam, era o mais honesto: elle ia formar-se para poder sustental-a, se n?o tivessem outros recursos; ella esperava que seu velho pae fallecesse para, senhora sua, lhe dar com o cora??o o seu grande patrimonio. Espanta discri??o tamanha na indole de Sim?o Botelho, e na presumivel ignorancia de Thereza em coisas materiaes da vida, como s?o um patrimonio!
Na vespera da sua ida para Coimbra, estava Sim?o Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ella foi arrancada da janella. O allucinado mo?o ouviu gemidos d'aquella voz que, um momento antes, solu?ava commovida por lagrimas de saudade. Subiu-lhe o sangue á cabe?a; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexiveis da jaula. Teve tenta??es de se matar, na impotencia de soccorrêl-a. As restantes horas d'aquella noite passou-as em raivas e projectos de vingan?a. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperan?a com os calculos.
Quando o chamaram para partir para Coimbra, lan?ou-se do leito de tal modo desfigurado, que sua m?e, avisada do rosto amargurado d'elle, foi ao quarto interrogal-o e despersuadil-o de ir era quanto assim estivesse febril. Sim?o, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, e esperar lá noticias de Thereza, e vir a Vizeu occultamente fallar com ella. Ajuizadamente discorrêra elle, que a sua demora aggravaria a situa??o de Thereza.
Descêra o academico ao páteo, depois de abra?ar a m?e e irm?s, e beijar a m?o do pae, que para esta hora reservara uma admoesta??o severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria se elle recahisse em novas extravagancias. Quando mettia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a m?o aberta, como quem pede esmola, e, na palma da m?o, um pequeno papel. Sobresaltou-se o mo?o; e, a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:
?Meu pae diz que me vai encerrar n'um convento, por tua causa. Soffrerei tudo por amor de ti. N?o me esque?as tu, e achar-me-has no convento, ou no ceo, sempre tua do cora??o, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá ir?o dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome has de responder á tua pobre Thereza.?
A mudan?a do estudante maravilhou a academia. Se o n?o viam nas aulas, em parte nenhuma o viam. Das antigas rela??es restavam-lhe apenas as dos condiscipulos sensatos que o aconselhavam para bem, e o visitaram no carcere de seis mezes, dando-lhe alentos e recursos, que seu pae lhe n?o dava, e sua m?e escassamente suppria. Estudava com fervor, como quem já d'alli formava as bases do futuro renome e da posi??o por
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 63
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.