A velhice do padre eterno | Page 7

Guerra Junqueiro
ò monstro da ironia,
Genio que
Deus conduz e Satanaz impelle,
Que esmagas hoje o _infame_, e
escreves no outro dia
Com a tinta do enxurro os versos da Pucelle;

Tu és feito de luz e feito de baixesas,
Feito de heroicidade e de
protervias más;
Corromperam-te a alma os braços das duquezas
E
encarguilhou-te a face o rir de Satanaz.
Rasgas ao mundo novo a
estrada do futuro
Cantando ao mesmo tempo o sordido deboche:
És
como um Juvenal dentro d'um Epicuro,
Ó arlequim-titan, ó
semi-deus-gavroche.
N'esse labio mordente esso sorriso eterno
Faz
frio como a ponta aguda d'uma espada;
O teu genio, Voltaire, é como
o sol do inverno,
Dá muitissima luz, mas não aquece nada.
Em vão
por sobre a paz dos campos desolados
Elle entorna do azul seus vivos
esplendores;
Não cantam rouxinoes nas sebes dos vallados,
Não faz
nascer o trigo e germinar as flores.
É que nunca soubeste o que é a
dôr profunda
Que estalla fibra a fibra os grandes corações;
É que
nunca choraste, ó Prometheu corcunda,
Como Dante chorou, como
chorou Camões
Voltaire, ó rachador de velhos preconceitos,
Aos
golpes de teu riso, a golpes de machado
Cairam sobre a terra
athleticos, desfeitos
Na floresta da noite os cedros do passado.
Mataste a tradição, o dogma, o privilegio,
Assobiaste a rir a fé de
nossos paes,
E andaste pelo azul, hediondo sacrilegio!
A correr á
pedrada os deuses immortaes.
Empunhando o alvião terrivel da
verdade
Tu minaste, Voltaire, infatigavelmente
O alicerce de
bronze à velha sociedade.

Do teu riso cruel a onda dissolvente
Foi
como os vagalhões, arietes do mar,
Que cavam sob a rocha um tão
profundo abismo
Que a rocha fica quasi assente sobre o ar.
Tu
minaste, Voltaire, a rocha despotismo.
E depois de ter feito a
excavação noturna,
Como fazem no monte as feras sanguinarias,

Encheste até á bocca essa medonha furna
Com barris de petroleo e

bombas incendiarias
E em quanto o niveo pé soberbo de Antonieta

Da França estrangulava a suplicante voz,
Tu lançavas de longe a
tragica luneta,
Velho Fauno cruel, rindo com riso atroz.
Até que um
dia emfim exausto de cansaço,
Sentindo jà sem força as garras de
condor,
Tu chegaste, Arouet, sem te tremer o braço,
Ao rastilho da
mina o fogo abrasador.
Cobriu-se então o azul d'uma tormenta escura,

Echoou lugubremente o estrondo de trovão,
Viste arder o rastilho
até uma certa altura,
E foste-te esconder, a rir, na sepultura
Mal se
ia aproximando a hora da explosão.
Quando resuscitou Voltaire ficou atonito
Vendo os nossos chapeus e
as nossas calças pretas,
Mas como desejava andar no mundo
incognito,
E não lêr o seu nome impresso nas gazetas,
Oh, a
necessidade a quanto nos obriga!
Voltaire o diplomata, o cortezão
taful
Largou a juba d'oiro, a cabelleira antiga
E foi vestir-se á moda
aos armasens do Pool.
Na sexta feira santa os templos percorria

Voltaire para observar os crentes verdadeiros
No dia da paixão, no
luctuoso dia
Em que se faz de Christo o deus dos confeiteiros.

Arouet, ao vêr aquella estupida farçada,
Foi acordar Jesus na sua
campa ignorada
E disse-lhe:
II
--«Anda vêr ó Christo estes bandidos.
Que rostos tão floridos,
Que bellas digestões!
Ó pallido Jesus, ò
scismador antigo,
Levanta-te da campa e vem d'ahi commigo
A vêr estes ladrões.
Nós vamos passeiar juntos, de braço dado,
Mas vestirás primeiro um
frak bem talhado
De fino pano inglez,
E hasde pôr na cabeça este chapeu redondo,

Para ficar gentil, para ficar hediondo

Como qualquer burguez.
Tu odeias de certo estas casacas pretas,
Mas não quero, Jesus, que tu
me compromettas
Com esse balandrau muitissimo ratão.
Se eu
fosse ao boulevard comtigo e alguem me visse,
Ninguem oh, flôr do
tom! ninguem, oh canalhice!
Me apertaria a mão.
O talhe d'um colete e os pontos d'uma luva,
A menor frioleira, um
simples guarda chuva,
Substituiram hoje as regras de Lavater:

Passando eu por accaso enodoado e roto,
Diriam: «Que chapeu! que
pulha! que maroto!
Aquelle homem não tem nem sombras de
caracter!»
Anda, veste a farpella. Agora, sim senhor!
Muito grotesco és, meu
pobre Redemptor!
Vais a comprometter-me, ó alma do Diabo!
Que
figura infeliz, inteiramente chata!...
Pelo menos corrige o laço da
gravata
E põe na _boutoniere_ este jasmim do Cabo.
Necessitas de ter maneiras delicadas
E a arte de dizer uns pequeninos
nadas
Com chic e distincção. Ser Deus é muito bom;
Mas é preciso ser um
deus da fina roda,
Um deus do nosso tempo, um deus da ultima moda,

Um deus _petit-crevé_, um deus á _Benoiton_.
Se amanhã por acaso alguem, medita n'isto,
Te fosse apresentar--Sua
Ex. o Christo--
Nos devotos salões do bairro São-Germano,
Oh
escandalo! oh farça! oh padre omnipotente!
As duquezas, sorrindo
aristocratamente,
Achavam-te decerto um Deus provinciano.
Saiamos para a rua. A gente anda de lucto,
Porque consta que outr'ora
un visionario, un bruto,
Se deixara morrer pregado n'um madeiro.
E
hoje em memoria d'isto os paes compram ás filhas,

Tres caixas de pastilhas
Na loja d'um doceiro.
Quanta mulher formosa ahi nesses balcões!
Que lindas tentações,
Meu palido judeu!
Deixa por um instante as
regiões serenas;
Namora estas pequenas,
Que ellas hão de gostar do teu perfil hebreu.
Arranja um casamento e aprende a ter juizo.
A noiva pouco importa;
o dote é que preciso
Discutil-o. Olha lá, os paes que sejam velhos!...

Que vá para o diabo o reino da Utupia!
E hãode-te nomear socio da
academia
E, quem sabe! talvez
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