A velhice do padre eterno | Page 6

Guerra Junqueiro
de lata d'uma egreja.
Bonzos, podeis dizer á humanidade--Pára!--
Co'a foice excomunhão
podeis ceifar a ceara
Da heresia; podeis, segundo as ordenanças,

Metter pedras de sal na boca das creanças,
Fazer do Deus do amor o
Deus barbaridade,
Chamar á estupidez irmã da caridade
E jesuita a
Jesus e Christo a Carlos sete;
Vós podeis discutir junto da campa o
frete,
Recoveiros de Deus, o frete que é preciso
Para irdes levar lá
cima ao paraiso
A alma d'um defunto; ó bonzos, vós podeis
Ir pedir
emprestado um exercito aos reis
E defender com elle o papa, o
vaticano,
Do cerco que lhe faz o pensamento humano,
Pondo
adiante d'um dogma a boca d'um canhão;
Podeis encarcerar dentro da
inquisição
Galileu; vós podeis, anões, contra os ciclopes
Roncar
latim, zurrar sermões, brandir hyssopes,
Que não conseguireis que a
Liberdade vista
A batina pingada e rota d'um sacrista,
Que o direito
se ordene, e que a Justiça queira

Ir a Roma tomar, contricta, o véo de
freira!
O BAPTISMO
Exeat de vobis spiritus malignas. RITUAL.
Baptisaes: arrancaes d'um anjo um satanaz.
Desinfectaes Ariel

banhando-o em aguarraz
De egreja e no latim que um malandro
expectora,
Dizeis á noite:--limpa a tunica da aurora,
E ao rouxinol
dizeis:--pede a benção da c'ruja.
Daes os lirios em flôr ao rol da roupa
suja,
Representaes a farça estupida e sombria
D'um conego a lavar
um astro n'uma pia,
Finalmente extrahis da innocencia o pecado,

Que é o mesmo que extrahir d'uma rosa um cevado,
E tudo isto
porque?
Porque na biblia um mono
Devora uma maçã sem licença do dono!
EURICO
Cod. civil art. 1057 e 4031
Eurico, Eurico, ó pallida figura,
Lastimoso, romantico levita,
Que
nos serros do Calpe em noite escura
Ergues as mãos á abobada
infinita;
Rasga a pagina santa da Escriptura;
O espirito de luz que em nós
habita
Já não consente essa ideal loucura
Que faz do amor uma
paixão maldita.
Deixa a soidão dos montes escalvados;
Não soltes mais os threnos
inflamados,
Nem tenhas medo ás garras do demonio.
Beija a Hermengarda, a timida donzella.
E vai de braço dado tu e ella

Contrahir civilmente o matrimonio.
A ARVORE DO MAL
Por debaixo do azul sereno, entre a fragancia
Dos mirtos, dos rosaes,
Viviam n'uma doce e n'uma eterna infancia
Nossos primeiros paes.
Seus corpos juvenis, mais alvos do que a lua,

Mais puros que os diamantes,
Conservavam ainda a virgindade nua
Das coisas ignorantes.
Poz Deus n'esse jardim com sua mão astuta
Ao lado da innocencia
A Arvore do Mal que produzia a fructa
Venenosa da sciencia.
E, apezar de conter venenos homicidas
E o germen do pecado,
Era Deus quem comia á noite, ás escondidas,
Esse fructo vedado.
Por isso Jehovah tinha sciencia infinda,
Tinha um poder secreto,
E Adão que não provara os fructos era ainda
Um anjo analfabeto.
Eva colheu um dia o bello fructo impuro,
O fructo da Rasão.
N'esse instante sublime Eva tinha o Futuro
Na palma da sua mão!
O homem, abandonado a submissão covarde,
Viu o fructo e comeu.
Esse fructo é a luz que a Jupiter mais tarde
Roubará Prometheu.
E ao vêr igual a si a estatua que creara,
O homem reprobo e nu,
Jehovah exclamou: «Maldita seja a seara

cuja semente és tu!»

Veio depois a Egreja e repetiu aos crentes
De toda a humanidade:
«Maldito seja sempre o que enterrar os dentes
Nos fructos da Verdade!»
A Egreja permittia esse vedado pomo
Sòmente aos sacerdotes.
Da arvore do mal fugia o mundo, como
Os lobos dos archotes.
Se o sabio que buscava o oiro nas retortas
Ia como um ladrão
Roubar timidamente, á noite, ás horas mortas
Algum fructo do chão,
Tiravam-lhe da boca esse fructo damninho
D'uma maneira suave:
Atando-lhe á garganta uma corda de linho
Suspensa d'uma trave.
Um dia um visionario, alma vertiginosa,
Espirito immortal,
Foi deitar-se, que horror! á sombra temerosa
Da Arvore do Mal.
A Egreja ao vêr aquella intrepida heresia
Lança-lhe excomunhões;
Tomba por terra um fructo... e Newton
descobria
A lei das atracções!
Sacudi, sacudi, a arvore maldita,

Que os astros tombarão,
Como se sacudisse a abobada infinita
Deus com a propria mão!
E quando o mundo inteiro emfim houver comido
Até á saciedade
O fructo que lhe estava ha tanto prohibido,
O fructo da Verdade,
Homens, dizei então a Jehovah:--«Tirano,
Vai-te embora d'aqui!
Construimos de novo o paraiso humano;
Fizemol-o sem ti.
«Expulsaste do Olimpo a humanidade outr'ora,
Ó despota feroz;
Pois bem, o Olimpo é nosso, e Jehovah, agora
Expulsamos-te nós!
A SEMANA SANTA.
I
Não podendo dormir no horror da sepultura,
Na podridão escura
Da terra immunda e fria,
Voltaire despedaçando
o feretro chumbado,
E cingindo o lençol ao corpo esverdeado
Resuscitou um dia.
Pairava-lhe no labio o riso fulminante
Com que outr'ora gravou nas
crenças virginaes,
Como n'um rico espelho a aresta d'um diamante,

Tamanhas abjecções, sarcasmos tão brutaes.
Mas era ao mesmo
tempo o riso heroico e bom
Que os tiranos prostrava em misero
desmaio,
Riso a que succedeu o verbo de Danton,
Como a um

trovão succede o lampejar d'um raio.
Dormira febrilmente um longo
somno inquieto
Em quanto andava o mundo a executar-lhe os planos,

E vinha ver emfim, diabolico architeto,
O estado da sua obra ao
cabo de cem annos,
Ó satiro divino,
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