A velhice do padre eterno | Page 4

Guerra Junqueiro
muitos europeus
Quasi prefere já (horrivel
impiedade!)
Á falsificação do vinho do bom Deus
O vinho genuino
e puro da verdade;
E como já por isso, (assim como era d'antes)
A Igreja não nos queime
e o rei não nos enforque,
A curia procurou mercados mais distantes,

O Japão, o Perú, a Australia e Nova York.
Os _comis-voiageurs_ de Roma--os Lazaristas
Com as carregações
vão atravez do oceano,
Por toda a parte abrindo os armazens papistas,

A fim de dar consumo ao vinho ultramontano.
Em cada igreja existe uma taberna franca
Para impingir a tal mixordia,
o tal horror,
Ou secca ou doce, ou velha ou nova, ou tinta ou branca,

Segundo as condições e a fé do bebedor.
Para Hespanha vão muito uns vinhos infernaes,
Um veneno explosivo
e forte que produz
Um delirio tremente--o General Narvaes,
E um
vomito de sangue--o cura Santa Cruz.
Portugal quer vinagre. A Italia quer falerno.
Veuillot quer agua-raz
que ponha a lingua em braza.
E John Bull, por exemplo, um pouco
mais moderno,
Manda ao diabo a botica, e faz a droga em casa.
Ao povo, esse animal, que o Padre Eterno monta,
Como é pobre,
coitado, então a Santa Sé
Fabrica lhe uma borra incrivel, muito em
conta,
Um pouco de melaço e um pouco d'agua-pé.
A fina flôr christã, a flôr altiva e nobre,
O rico sangue azul do bairro

S. Germano,
Para quem o bom Deus é um gentil-homem pobre
A
quem se dá de esmola alguns milhões por anno.
Essa como detesta os vinhos maus, baratos,
Como é de raça illustre e
debil compleição,
Mandam-lhe um elixir que serve para os flatos,

Ou para pôr no lenço ao ir á communhão.
De resto ha quem, bebendo essa tisana impura,
Sinta a impressão que
outr'ora o nectar produzia.
São milagres da fé. Ditosa a creatura

Que no ruibarbo encontra o sabor da ambrosia.
E eu não vos vou magoar, ó almas côr de rosa
Que inda achaes neste
vinho o esquecimento e a paz!
Não insulto quem bebe a droga
venenosa;
Accuso simplesmente o charlatão que a faz.
A CARIDADE E A JUSTIÇA
No topo do calvario erguia-se uma cruz,
E pregado sobre ella o corpo
do Jesus,
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Corriam pelo ar
como grandes manadas
De bufalos. A lua ensanguentada e fria,

Triste como um soluço immenso de Maria,
Lançava sobre a paz das
coizas naturaes
A merencoria luz feita de brancos ais.
As arvores
que outr'ora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de magua e dôr,

Sonhavam, na mudez herculea dos heroes.
Deixaram de cantar
todos os rouxinoes,
Um silencio pesado amortalhava o mundo.

Unicamente ao longe o velho mar profundo
Descantava chorando os
psalmos da agonia.
Jesus, quasi a expirar, cheio de dôr, sorria.
Os
abutres crueis pairavam lentamente
A farejar-lhe o corpo; ás vezes de
repente
Uma nuvem toldava a face do luar,
E um clarão de
gangrena, estranho, singular,
Lançava sob a cruz uns tons
esverdeados.
Crucitavam ao longe os corvos esfaimados;
Mas
passado um instante a lua branca e pura
Irrompia outra vez da grande
nevoa escura,
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Nas
pulverisações balsamicas da luz.

No momento em que havia a grande escuridão,
Christo sentiu alguem
aproximar-se, e então
Olhou e viu surgir no horror das trevas mudas

O cobarde perfil sacrilego de Judas.
O traidor, contemplando o
olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdem, tão nobre, tão sereno,

Convulso de terror fugiu... Mas nesse instante
Surgiu-lhe frente a
frente um vulto de gigante,
Que bradou:
--É chegado emfim o teu castigo
O traidor teve medo e balbuciou:
--Amigo,
Que pretendes de mim? dize, por quem esperas?
Quem és
tu?--
--«O Remorso, um caçador de féras,
Disse o gigante. Eu ando ha
mais de seis mil annos
A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,

Do traidor, do ladrão, do vil, do scelerado;
E depois de as prender
tenho-as encarcerado
Na enormissima jaula atroz da expiação.
E
quando eu entro ali na immensa confusão
De tigres, de leões,
d'abutres, de chacaes,
De rugidos febris e de gritos bestiaes,
Fica
tudo a tremer, quieto de horror e espanto.
Caim baixa a pupilla e vai
deitar-se a um canto.
E quando em summa algum dos monstros quer
luctar
Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um
pontapé, como n'um cão mendigo.
Já sabes quem eu sou, Judas; anda
comigo!»
Como um preso que quer comprar um carcereiro,
Judas tirou do
manto a bolça do dinheiro,
Dizendo-lhe:
--Aqui tens, e deixa-me partir...
O gigante fitou-o e começou a rir.
Houve um grande silencio. O infame Iskariote,
Como um negro que
vê a ponta d'um chicote,
Tremia. Finalmente o vulto respondeu:
«Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.
O oiro da traição

pertence-lhe ao traidor,
Como o riso á innocencia e como o aroma á
flôr.
Esse oiro é para ti o eterno pesadello.
Oh! guarda-o, guarda-o
bem, que eu quero derretel-o,
E lançar-t'o depois caustico, vivo,
ardente,
Lançar-t'o gota a gota, inexoravelmente
Em cima da
consciencia, a pudrida, a execravel!
Com elle hei de fundir a algema
inquebrantavel,
A grilheta que a tua esqualida memoria
Trará,
arrastará pelas galés da Historia,
Durante a eternidade illimitada e
calma.
Essa bolsa que ahi tens é o cancro da tua alma:
Já se agarrou
a ti, ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,

Como o iman ao ferro e o
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