E quando a morte em breve
Vos entre na choupana esqualida e feroz,
A agonia será bem rapida e bem leve,
Porque um anjo de Deus mais alvo do que a neve
Ha-de estender sorrindo as azas sobre vós.
E vós conhecereis em seu olhar materno
Que é o anjo que emballou vosso somno infantil,
E que hoje vem do céo mandado pelo Eterno,
Para sorrir na morte ao vosso branco inverno,
Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.
E ao pender-vos gelada a vossa fronte alabastrina
Irá levar a Deus o
vosso coração,
Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,
Que
Deus ha-de beijal-o e aquecel-o no peito,
Como se acaso fosse uma
pomba divina,
Que viesse cahir-lhe exanime na mão!
A VINHA DO SENHOR
I
Existiu n'outro tempo uma vinha piedosa
Doirada pelo sol da alma de
Jesus,
Uma vinha que dava uns fructos côr de roza,
Vermelhos
como o sangue e puros como a luz.
Inundavam-n'a d'agua os olhos de Maria,
E os virgens corações dos
martyres, dos crentes
Eram a terra funda aonde se embebia
A
mystica raiz dos pampanos virentes.
Produzia um licor balsamico, divino,
Que aos cégos dava luz, aos
tristes dava esp'rança,
E que fazia ver na areia do destino
A
miragem feliz da bemaventurança.
Aos mortos restituia o movimento e a falla;
Escravisava a carne, as
tentações, a dôr,
E transformou em santa a impura de Magdala,
Como transforma Abril um verme n'uma flôr.
Bebel-o era beber uma virtuosa essencia
Que ungia o coração de
perfumes ideaes,
Pondo no labio um riso ingenuo de innocencia,
Como o d'agua a correr, virgem, dos mananciaes.
Dava um tal explendor ás almas, tal pureza
Que nos Circos de Roma
até se viu baixar
Diante da nudez das virgens sem defeza
Ao magro
leão da Nubia o curuscante olhar.
II
Mas passado algum tempo a humanidade inteira
De tal modo gostou
d'esse licor sublime,
Que o extasis christão tornou-se em bebedeira,
E o sonho em pezadello, e o pezadello em crime.
Nas solidões do claustro as virgens inflamadas
Co'as fortes atracções
da mistica ambrozia
Torciam-se febris, convulsas, desvairadas,
Meretrizes de Deus n'uma piedosa orgia.
É que no vinho antigo ia á noite o demonio
Lançar co'a garra adunca
uma infernal mistura
De mandragora e opio e helleboro e stramonio,
Verdenegro e viscoso extracto de loucura.
Quando uivava de noite o vento nas campinas
Via-se pela sombra,
obliquo, Satanaz,
Colhendo aos pés da forca ou buscando entre as
ruinas
Hervas, vegetações, prenhes de essencias más.
Era o filtro subtil d'essas plantas de morte
Que fazia da alma um
derviche incoherente,
Uma bussola doida á procura do norte
Uma
céga a tatear no vacuo, anciosamente!...
E a taça do veneno estonteador e amargo
No funebre banquete ia de
mão em mão,
Produzindo o delirio, a syncope, o lethargo
E em
cada olhar sinistro uma cruel visão.
Uns viam a espectral sarabanda frenetica
De esqueletos a rir e a
dançar com furor
Em torno á Morte podre, impudente, epileptica,
Com dois ossos em cruz rufando n'um tambor.
Outros viam chegado o pavoroso instante
Em que um monstro do
fogo, um dragão areolito,
Dava na terra um nó c'oa cauda
flammejante,
Arrebatando-a, a arder, atravez do infinito.
E então para fugir ao desespero e ao panico
Bebiam com mais ancia o
filtro singular.
Até á epilepsia, ao turbilhão tetanico
Do sabat
desgrenhado e erotico, a espumar!
E á força de beber o tragico veneno
Tombou por terra exhausta a
humanidade emfim,
Como em Londres, de noite, ao pé d'um antro
obsceno
Cáe sob a lama inerte um bebado de gim.
III
Mas n'isto despontou a esplendida manhã
D'um mundo juvenil,
robusto, afrodisiaco:
A Renascença foi para a embriaguez christã
A
excitação vital d'um frasco de amoniaco.
E na vinha de Deus ainda florescente
Começou a nascer por essa
occasião
Um bicho que enterrava escandalosamente
Nos pampanos
da crença as unhas da razão.
Propagou-se o flagello; o mal recrudesceu;
A colheita ficou em duas
terças partes;
Chega o oidium Lutero, o verme Galileu,
E cai-lhe o
temporal de Newton e Descartes.
Em balde Carlos nove, Ignacio e Torquemada,
Catando esses pulgões
das bíblicas videiras,
Os entregam á roda, ao cadafalso, á espada,
Ou os queimam por junto aos centos nas fogueiras.
O estrago cada vez era maior, mais forte;
Apezar da realeza, o throno
e a sachristia
Andarem sacudindo o enxofrador da morte
No
formigueiro vil das pragas da heresia.
Por ultimo Voltaire--filoxera invade
Essa encosta plantada outr'ora
por Jesus,
E das cepas ideaes da escura meia idade
Ficaram
simplesmente uns velhos troncos nús.
IV
Mas como havia ainda alguns consumidores
D'esse vinho que o sol
deixou de fecundar,
Uns velhos cardeaes, habeis exploradores,
Reuniram-se em concilio afim de os imitar.
E é assim que Antonelli, o verdadeiro papa,
O chimico da fé, um
grande industrial,
Fabrica para o mundo ingenuo uma zurrapa
Que
elle assevera que é o antigo vinho ideal.
Para isso combina os varios elementos
Que compõem esta droga: o
nome de Maria,
Anjos e cherubins, infernos e tormentos,
Bastante
estupidez e immensa hypocrizia.
Põe isto tudo a ferver, liga, combina, mexe,
E, filtrando atravez d'uns
textos de latim,
Eis preparado o vinho, ou antes o campeche,
Que a
saúde da alma hade arruinar por fim.
Mas como o paladar de
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