A velhice do padre eterno | Page 4

Guerra Junqueiro
droga em casa.
Ao povo, esse animal, que o Padre Eterno monta,?Como é pobre, coitado, ent?o a Santa Sé?Fabrica lhe uma borra incrivel, muito em conta,?Um pouco de mela?o e um pouco d'agua-pé.
A fina fl?r christ?, a fl?r altiva e nobre,?O rico sangue azul do bairro S. Germano,?Para quem o bom Deus é um gentil-homem pobre?A quem se dá de esmola alguns milh?es por anno.
Essa como detesta os vinhos maus, baratos,?Como é de ra?a illustre e debil complei??o,?Mandam-lhe um elixir que serve para os flatos,?Ou para p?r no len?o ao ir á communh?o.
De resto ha quem, bebendo essa tisana impura,?Sinta a impress?o que outr'ora o nectar produzia.?S?o milagres da fé. Ditosa a creatura?Que no ruibarbo encontra o sabor da ambrosia.
E eu n?o vos vou magoar, ó almas c?r de rosa?Que inda achaes neste vinho o esquecimento e a paz!?N?o insulto quem bebe a droga venenosa;?Accuso simplesmente o charlat?o que a faz.
A CARIDADE E A JUSTI?A
No topo do calvario erguia-se uma cruz,?E pregado sobre ella o corpo do Jesus,?Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas?Corriam pelo ar como grandes manadas?De bufalos. A lua ensanguentada e fria,?Triste como um solu?o immenso de Maria,?Lan?ava sobre a paz das coizas naturaes?A merencoria luz feita de brancos ais.?As arvores que outr'ora em dias de calor?Abrigaram Jesus, cheias de magua e d?r,?Sonhavam, na mudez herculea dos heroes.?Deixaram de cantar todos os rouxinoes,?Um silencio pesado amortalhava o mundo.?Unicamente ao longe o velho mar profundo?Descantava chorando os psalmos da agonia.?Jesus, quasi a expirar, cheio de d?r, sorria.?Os abutres crueis pairavam lentamente?A farejar-lhe o corpo; ás vezes de repente?Uma nuvem toldava a face do luar,?E um clar?o de gangrena, estranho, singular,?Lan?ava sob a cruz uns tons esverdeados.?Crucitavam ao longe os corvos esfaimados;?Mas passado um instante a lua branca e pura?Irrompia outra vez da grande nevoa escura,?E inundavam-se ent?o as chagas de Jesus?Nas pulverisa??es balsamicas da luz.
No momento em que havia a grande escurid?o,?Christo sentiu alguem aproximar-se, e ent?o?Olhou e viu surgir no horror das trevas mudas?O cobarde perfil sacrilego de Judas.?O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,?T?o cheio de desdem, t?o nobre, t?o sereno,?Convulso de terror fugiu... Mas nesse instante?Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,?Que bradou:
--é chegado emfim o teu castigo?O traidor teve medo e balbuciou:
--Amigo,?Que pretendes de mim? dize, por quem esperas??Quem és tu?--
--?O Remorso, um ca?ador de féras,?Disse o gigante. Eu ando ha mais de seis mil annos?A ca?ar pelo mundo as almas dos tiranos,?Do traidor, do ladr?o, do vil, do scelerado;?E depois de as prender tenho-as encarcerado?Na enormissima jaula atroz da expia??o.?E quando eu entro ali na immensa confus?o?De tigres, de le?es, d'abutres, de chacaes,?De rugidos febris e de gritos bestiaes,?Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto.?Caim baixa a pupilla e vai deitar-se a um canto.?E quando em summa algum dos monstros quer luctar?Azorrago-o co'a luz febril do meu olhar,?Dando-lhe um pontapé, como n'um c?o mendigo.?Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!?
Como um preso que quer comprar um carcereiro,?Judas tirou do manto a bol?a do dinheiro,?Dizendo-lhe:
--Aqui tens, e deixa-me partir...
O gigante fitou-o e come?ou a rir.
Houve um grande silencio. O infame Iskariote,?Como um negro que vê a ponta d'um chicote,?Tremia. Finalmente o vulto respondeu:
?Judas, podes guardar esse dinheiro; é teu.?O oiro da trai??o pertence-lhe ao traidor,?Como o riso á innocencia e como o aroma á fl?r.?Esse oiro é para ti o eterno pesadello.?Oh! guarda-o, guarda-o bem, que eu quero derretel-o,?E lan?ar-t'o depois caustico, vivo, ardente,?Lan?ar-t'o gota a gota, inexoravelmente?Em cima da consciencia, a pudrida, a execravel!?Com elle hei de fundir a algema inquebrantavel,?A grilheta que a tua esqualida memoria?Trará, arrastará pelas galés da Historia,?Durante a eternidade illimitada e calma.?Essa bolsa que ahi tens é o cancro da tua alma:?Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,?Como a lepra nojenta ao peito do leproso,?Como o iman ao ferro e o verme á podrid?o.?N?o poderás jámais largal-a da tua m?o!?és traidor, assassino, hypocrita, perjuro;?A tua alma lan?ada em cima d'um monturo?Faria nodoa. és tudo o que ha de mais vil,?Desde o ventre do sapo á baba do reptil.?Sahe da existencia! dize á sombra que te acoite.?Monstro, procura a paz! verme, procura a noite!?Que o sol n?o veja mais um unico momento?O teu olhar obliquo e o teu perfil nojento.?Esse crime, bandido, é um crime que profana,?Todas as grandes leis da vida universal.?Esconde-te na morte, assim como um chacal?No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.?Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!?és livre; adeus. Já brilha o astro matutino,?E eu, ca?ador feroz, cumprindo o meu destino,?Continuarei ca?ando os javalis nos matos.?
E dito isto partiu a procurar Pilatos.
Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada.?Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,?Caminhando ligeiro, impavido, terrivel,?Como um homem que leva um fim imprescriptivel?Uma ideia qualquer, heroica e sobranceira;?De repente estacou. Havia uma figueira?Projectando na estrada a larga sombra escura;?Judas, desenrolando a corda da cintura,?Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,?Dando
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