A velhice do padre eterno | Page 3

Guerra Junqueiro
piedosa?Doirada pelo sol da alma de Jesus,?Uma vinha que dava uns fructos c?r de roza,?Vermelhos como o sangue e puros como a luz.
Inundavam-n'a d'agua os olhos de Maria,?E os virgens cora??es dos martyres, dos crentes?Eram a terra funda aonde se embebia?A mystica raiz dos pampanos virentes.
Produzia um licor balsamico, divino,?Que aos cégos dava luz, aos tristes dava esp'ran?a,?E que fazia ver na areia do destino?A miragem feliz da bemaventuran?a.
Aos mortos restituia o movimento e a falla;?Escravisava a carne, as tenta??es, a d?r,?E transformou em santa a impura de Magdala,?Como transforma Abril um verme n'uma fl?r.
Bebel-o era beber uma virtuosa essencia?Que ungia o cora??o de perfumes ideaes,?Pondo no labio um riso ingenuo de innocencia,?Como o d'agua a correr, virgem, dos mananciaes.
Dava um tal explendor ás almas, tal pureza?Que nos Circos de Roma até se viu baixar?Diante da nudez das virgens sem defeza?Ao magro le?o da Nubia o curuscante olhar.
II
Mas passado algum tempo a humanidade inteira?De tal modo gostou d'esse licor sublime,?Que o extasis christ?o tornou-se em bebedeira,?E o sonho em pezadello, e o pezadello em crime.
Nas solid?es do claustro as virgens inflamadas?Co'as fortes atrac??es da mistica ambrozia?Torciam-se febris, convulsas, desvairadas,?Meretrizes de Deus n'uma piedosa orgia.
é que no vinho antigo ia á noite o demonio?Lan?ar co'a garra adunca uma infernal mistura?De mandragora e opio e helleboro e stramonio,?Verdenegro e viscoso extracto de loucura.
Quando uivava de noite o vento nas campinas?Via-se pela sombra, obliquo, Satanaz,?Colhendo aos pés da forca ou buscando entre as ruinas?Hervas, vegeta??es, prenhes de essencias más.
Era o filtro subtil d'essas plantas de morte?Que fazia da alma um derviche incoherente,?Uma bussola doida á procura do norte?Uma céga a tatear no vacuo, anciosamente!...
E a ta?a do veneno estonteador e amargo?No funebre banquete ia de m?o em m?o,?Produzindo o delirio, a syncope, o lethargo?E em cada olhar sinistro uma cruel vis?o.
Uns viam a espectral sarabanda frenetica?De esqueletos a rir e a dan?ar com furor?Em torno á Morte podre, impudente, epileptica,?Com dois ossos em cruz rufando n'um tambor.
Outros viam chegado o pavoroso instante?Em que um monstro do fogo, um drag?o areolito,?Dava na terra um nó c'oa cauda flammejante,?Arrebatando-a, a arder, atravez do infinito.
E ent?o para fugir ao desespero e ao panico?Bebiam com mais ancia o filtro singular.?Até á epilepsia, ao turbilh?o tetanico?Do sabat desgrenhado e erotico, a espumar!
E á for?a de beber o tragico veneno?Tombou por terra exhausta a humanidade emfim,?Como em Londres, de noite, ao pé d'um antro obsceno?Cáe sob a lama inerte um bebado de gim.
III
Mas n'isto despontou a esplendida manh??D'um mundo juvenil, robusto, afrodisiaco:?A Renascen?a foi para a embriaguez christ??A excita??o vital d'um frasco de amoniaco.
E na vinha de Deus ainda florescente?Come?ou a nascer por essa occasi?o?Um bicho que enterrava escandalosamente?Nos pampanos da cren?a as unhas da raz?o.
Propagou-se o flagello; o mal recrudesceu;?A colheita ficou em duas ter?as partes;?Chega o oidium Lutero, o verme Galileu,?E cai-lhe o temporal de Newton e Descartes.
Em balde Carlos nove, Ignacio e Torquemada,?Catando esses pulg?es das bíblicas videiras,?Os entregam á roda, ao cadafalso, á espada,?Ou os queimam por junto aos centos nas fogueiras.
O estrago cada vez era maior, mais forte;?Apezar da realeza, o throno e a sachristia?Andarem sacudindo o enxofrador da morte?No formigueiro vil das pragas da heresia.
Por ultimo Voltaire--filoxera invade?Essa encosta plantada outr'ora por Jesus,?E das cepas ideaes da escura meia idade?Ficaram simplesmente uns velhos troncos nús.
IV
Mas como havia ainda alguns consumidores?D'esse vinho que o sol deixou de fecundar,?Uns velhos cardeaes, habeis exploradores,?Reuniram-se em concilio afim de os imitar.
E é assim que Antonelli, o verdadeiro papa,?O chimico da fé, um grande industrial,?Fabrica para o mundo ingenuo uma zurrapa?Que elle assevera que é o antigo vinho ideal.
Para isso combina os varios elementos?Que comp?em esta droga: o nome de Maria,?Anjos e cherubins, infernos e tormentos,?Bastante estupidez e immensa hypocrizia.
P?e isto tudo a ferver, liga, combina, mexe,?E, filtrando atravez d'uns textos de latim,?Eis preparado o vinho, ou antes o campeche,?Que a saúde da alma hade arruinar por fim.
Mas como o paladar de muitos europeus?Quasi prefere já (horrivel impiedade!)?á falsifica??o do vinho do bom Deus?O vinho genuino e puro da verdade;
E como já por isso, (assim como era d'antes)?A Igreja n?o nos queime e o rei n?o nos enforque,?A curia procurou mercados mais distantes,?O Jap?o, o Perú, a Australia e Nova York.
Os _comis-voiageurs_ de Roma--os Lazaristas?Com as carrega??es v?o atravez do oceano,?Por toda a parte abrindo os armazens papistas,?A fim de dar consumo ao vinho ultramontano.
Em cada igreja existe uma taberna franca?Para impingir a tal mixordia, o tal horror,?Ou secca ou doce, ou velha ou nova, ou tinta ou branca,?Segundo as condi??es e a fé do bebedor.
Para Hespanha v?o muito uns vinhos infernaes,?Um veneno explosivo e forte que produz?Um delirio tremente--o General Narvaes,?E um vomito de sangue--o cura Santa Cruz.
Portugal quer vinagre. A Italia quer falerno.?Veuillot quer agua-raz que ponha a lingua em braza.?E John Bull, por exemplo, um pouco mais moderno,?Manda ao diabo a botica, e faz a
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