A princeza na berlinda | Page 8

Urbano de Castro
agua.
5.^o--Se é francez, não lhe dão nada.
Aqui está approximadamente a gradação do estima a que um

estrangeiro póde aspirar em Portugal.
Os inglezes são os mais considerados, o que se explica, dizendo-se que
Portugal é um pouco uma colonia ingleza, uma terra de exportação para
os productos da Grã-Bretanha: o ouro e os uniformes militares são
inglezes. Ha n'este povo meridional muitos costumes anglicanos que
ficaram como recordação da alliança das armas inglezas contra os
francezes em 1808.
Os allemães gosam de alguma consideração.
Os americanos do norte são antes temidos do que estimados.
Os italianos são todos pastelleiros ou tenores; é a opinião dos
portuguezes que dou aqui, não a minha. Mas é uma opinião
perfeitamente estabelecida, e qualquer que seja a posição social d'um
italiano que chega a Portugal, será considerado por todos como um
pastelleiro que fez fortuna, ou como um tenor em procura de escriptura.
Os francezes muito bem acolhidos á superficie, são perfeitamente
detestados no fundo. Quando não são luveiros, cabelleireiros ou
cozinheiros consideram-os como uns aventureiros. Ha uma avidez por
todos os fructos da sua intelligencia, tira-se-lhes tudo que produzem em
sciencias, bellas artes e litteratura, mas ninguem se julga em obrigação
de lhes dar nada em troca. Detestam-os por instincto. Esta antipathia
transmitte-se de paes a filhos, ou para melhor dizer, remonta de filhos a
paes até ao primeiro imperio.»
* * * * *
Disse uma vez um poeta nosso que certo sujeito era uma perfidia dentro
d'um assucareiro, d'este trechosinho póde dizer-se, parodiando aquella
phrase:--que é tambem uma perfidia dentro d'outra coisa acabada em
eiro.
Com que então em Lisboa quando se encontra um francez cahido no
meio da rua, cheio de fome, morto de inanição, passa-se para deante e
não se lhe dá nada, absolutamente nada, rien du tout?

Oh! honestissima e honradissima princeza, porque não se atolou mais
um poucochinho no esterquilinio da calumnia,--para que deixou a
cabecinha de fóra? Que diabo! tem pouca imaginação vossa alteza!
gira-lhe nas veias sangue de principes, mas a calumniar não passa
d'uma burguesinha--porque dizer só, que a um francez que se encontra
estendido na praça publica, nada se dá, nada se lhe faz?--porque não
disse antes, que se varria esse francez d'envolta com o lixo, porque não
disse que se lhe dava um bolo de strichinina?--Per Baco, produzia mais
effeito, princeza!
* * * * *
Afinal, de tudo quanto ha no seu livro, a pagina deveras torpe, é
aquella.
Do resto, diga-se a verdade, nem quasi valia a pena fallar.
Ah! mas aquella paginasinha, merece, merece que se escrevam algumas
linhas...
Quem lhe disse, princeza, que os francezes eram detestados em Lisboa,
detestados por instincto?--Eu sei quem lh'o disse,--foi a sua espertesa
saloia. Vossa alteza sahiu de Portugal despeitada com muita gente,--por
isto, por aquillo, por aquell'outro,--porque a nossa boa nobreza, que
ainda a temos, não a visitou;--porque os jornaes não fallaram tanto
quanto vossa alteza queria do seu talento e das suas obras;--porque a
platéa dos Recreios a pateou desapiedadamente; etc. Sahindo d'aqui
despeitada quiz vingar-se. É natural. Era preciso porém para que a sua
vingança fosse completa que ella encontrasse echo n'essa grande nação
que ainda hoje dá as leis ao mundo.--«Vou desacreditar Portugal á face
da França--» disse a princeza com os seus algodões.--Mas para que a
França faça o acompanhamento á minha serenata, o que heide eu
fazer?--Porque afinal a verdade é esta:--eu sou muito conhecida em
França... Alfonse Karr, Boissieu, Pelletan... que o diabo, os confunda a
todos,--mostraram bem quem eu sou, nas Guépes nas Lettres de
Colombine, na Nouvelle Babylone... Ah! já sei! exclamou vossa alteza
de repente:--escrevo que os francezes são detestados, execrados em
Portugal... Sim, sim, é isto:--Tonerre de Dieu! estava-me

desconhecendo... Que tempo levei para fazer uma descoberta afinal tão
simples, e tanto na minha indole... É claro como agua:--dizendo eu que
os francezes são odiados, detestados, execrados, que ao vêl'os
estendidos no meio da rua ninguem os soccorre, e que para ali ficam
abandonados como famintos cãos vadios, elles, esses bons e
enthusiasticos francezes, sentirão o fogo da indignação girar-lhe nas
veias, e correndo ao meu palacio, virão gritar em côro debaixo das
minhas janellas:--Bravo princeza, bravo, quanto dizes d'essa cambada,
d'essa canalha de portuguezes é pouco; nunca as mãos te doam, mulher!
Patifes, deixarem-nos morrer sem soccorros no meio da rua... Tira-lhes
a pelle, escorraça-os, frege-os em postas--e conta que as nossas bençãos
cahirão sobre a tua cabeça.»
* * * * *
Ora tudo isto, princeza, permitta-me que repita a phrase, não passou de
esperteza saloia.
A França, sabe perfeitamente quanto é querida e estimada em Portugal.
Ella não ignora de certo que na hora da provação, quando rebentou essa
terrivel guerra franco-prussiana, aqui n'esta cidade de Lisboa,--onde se
abandonam vilmente francezes no meio da rua,--todos, sem distincção
de classes,
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