A princeza na berlinda | Page 2

Urbano de Castro
é
que me obsequeiam. Escusam de dizer «muito obrigado!» eu é que
tenho que dizer-lhes «merci»!
E escreveu Le Portugal à vol d'oiseau.
* * * * *
Lisboa já sabe pouco mais ou menos o que o livro é. Os jornaes tem
dado excellentes amostras d'aquella famosa peça...
Porque não havemos nós de dar tambem algumas? Estes dois perfis da
nossa nobreza, por exemplo...
Venha primeiro o conde de ***
«--O conde *** um dos meus valsistas, e um valsista encantador, entre
parenthesis, não é menos notavel. De muito antiga e nobre familia, é
verdadeiramente um dos typos mais salientes de Lisboa. Orça pelos
cincoenta, mas não obstante apparenta um grande ar de mocidade.
Baixinho, apurado, e elegante, ha em toda a sua pessoa uma excessiva
vivacidade. Esta vivacidade será natural ou o resultado d'um estudo
paciente para parecer ainda mais novo?
Talvez que sim a avaliar a sua petulancia pelo mais. Os bigodes do
conde de *** são mais negros do que o ebano.
Mas isto não é nada comparado ao craneo do encantador conde; o

proprietario d'este craneo conserva n'elle alguns cabellos, raros,
semeados aqui e ali, tratados com zelosos cuidados, e que puchados
artisticamente para a testa, ahi occupam o maximo espaço possivel para
assim substituirem os ausentes. Para suprir os defuntos põe no cucuruto
uma especie de pequeno crescente--não, eu nunca ousaria dizer chinó
fallando de tão perfeito cavalheiro--que se confunde graciosamente
com os cabellos: depois cobre tudo isto com uma espessa camada de
pez e summo de alcaçuz de que faz uma pomada a fogo lento; por fim o
seu creado de quarto, confidente d'esta excentricidade, traça no meio
d'esta pasta de raisiné breton, uma risca d'uma delicadeza, d'uma
puresa, d'uma nitidez a causar inveja a uma rapariga de quinze annos.
Quando a cataplasma está secca, o conde póde apparecer no meio dos
seus concidadãos. Todos conhecem o mysterio d'aquella cabeça e ha
delirios de alegria quando o excellente homem é obrigado, em pleno sol
ou em pleno baile, a andar de chapeu na mão, porque o calor tendo
acção dissolvente sobre aquella untura, resulta d'ahi começar ella a
mover-se, a palpitar, a derreter-se, acabando por escorrer pelo pescoço
e pelo nariz do seu proprietario.
Não obstante o conde de *** é um grande conquistador, um namorador
que não perde occasião de deitar a sua olhadella, sendo porém capaz de
praticar heroismos, como o demonstram varias circumstancias da sua
vida.
Conta-se este facto digno dos melhores tempos da monarchia. O conde
era camarista da infanta D. Izabel, que morreu ha annos, em avançada
edade, no seu palacio de Bemfica nos arrebaldes de Lisboa. Sendo os
principes da familia real depositados na egreja de S. Vicente, situada
n'um dos extremos da cidade opposto a Bemfica, o cortejo funebre teve
de percorrer duas leguas, a passo, em pleno mez de julho.
O conde devia seguir a cavallo, uniformisado e de cabeça descoberta, o
corpo da sua real ama, debaixo d'um sol torrido, o que elle fez
magnanimamente, sem trepidar, entregando aos abrasadores raios de
Phebo a sua untura quotidiana--facil presa--sem temer a troça dos
graciosos que, no dia seguinte, alludindo á liquefação do cosmetico,
diziam por toda a parte que ninguem figurara no cortejo com o rosto

mais tristemente cheio de luto do que o infeliz conde de ***.»
Igual a isto só aquella celebre caricatura do Antonio Maria... «Dá-lhe
cuspo...»
* * * * *
Agora o marquez de V. ***
* * * * *
--«Como exemplo não, quero citar senão um dos meus amigos o
marquez de V. ***. Vale bem a pena. É uma personalidade, uma
celebridade, uma curiosidade de primeira ordem. Em vão lhe
procurariam rival na galeria do duque de Saint-Simon, e ainda menos
na collecção tão rica de Moliére. Em certas festas de gala ou de
representação exterior, o marquez de V. *** julga-se obrigado a seguir
as carruagens da côrte na sua equipagem, e é esta equipagem que faz do
nobre marquez uma curiosidade unica do mundo.
Imagine-se um coche do seculo passado, envidraçado de modo a ver-se
todo o interior, montado sobre molas e rodas que fazem pensar nas
machinas de Leviathan, tudo isto pintado de verde, cheio de dourados
em alto e baixo relevo. No meio d'esta caixa throno, o marquez de V.
*** só, de cabeça descoberta, com o grande uniforme d'uma ordem
qualquer, com os olhos fitos na sua frente, parecendo contemplar em
extase as abas da libré do seu cocheiro, não voltando a cabeça nunca,
nem para a direita nem para a esquerda: dir-se-hia uma estatua e não
um homem.
A carruagem é atrelada a quatro cavallos, montados por dois postilhões
e guiados por um cocheiro gorducho sentado n'uma almofada que
parece um divan. Na taboa da carruagem dois enormes lacaios em pé.
Todo este
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