A penalidade na India segundo o Código de Manu | Page 3

António Cândido de Figueiredo
criança, um homem só, o ébrio, o dôido, o esfomeado e o
sedento, o apaixonado, o colérico, o ladrão, não podem sêr chamados a
depôr em cáusas judiciárias[12].

[12] VIII, 65-67.
Mulheres só podem depôr a favôr de mulheres. E, diga-se de passagem,
não deveremos estranhar muito esta disposição da lei indiana, visto
como em pleno século XIX, o código civil português não permitte que
as mulheres sejam testemunhas em testamentos[13].
[13] Cod. civ. port., art. 1966, n.º 2.
Os çudras podem depôr a favôr dos çudras; mas, quando se trata do um
facto succedido em logar occulto, como num bosque, ou quando se
trata de um assassínio, póde depôr quem quer que presenceie o facto.
Nêstes casos, á míngua de melhores testemunhas, póde acceitar-se até o
depoimento de uma mulher, de uma criança, de um velho, de um
discipulo, de um parente, de um escravo ou de um serviçal[14].
[14] VIII, 68-70.
Quando as testemunhas estão reunidas na sala da audiencia, em
presença do demandante e do defendente, ordena o código que o juíz as
inquira, exortando-as brandamente, desta fórma:
«Declarai francamente tudo quanto sabêis sôbre esta matéria, porque se
pretende aqui o vosso testemunho[15].»
[15] VIII, 79 e 80.
O legisladôr disserta largamente sôbre a obrigação moral, que ás
testemunhas cabe, de dizerem a verdade, e sôbre a responsabilidade e
os castigos que importa comsigo um falso testemunho.

*VI*
Outro meio de prova judicial é o juramento, que o juíz defere ás partes
litigantes, quando não há testemunhas, que possam depôr sôbre o facto
controvertido[16].

[16] VIII, 109.
O juíz fará jurar o bráhmane pela sua veracidade; o kchatriá pelos seus
cavallos, pelos seus elefantes e pelas suas armas; o vaysiá pelos seus
rebanhos, pelas suas searas e pelo seu oiro; os çudras por todos os
crimes[17].
[17] VIII, 113.

*VII*
Falaremos agora de outra prova judicial, muito conhecida e muito
usada na Europa da idade média, e que innegavelmente foi trazida para
o occidente pela corrente das emigrações arianas.
Alludimos aos chamados juízos de Deus.
Algumas espécies destas provas absurdas e talvez ímpias, deixaram
vestígios no Japão, na Africa occidental, na Escandinávia, na Grécia e
na Irlanda. Prova-o Michelet, fundado em testemunhos
irrefragáveis[18].
[18] Origines du droit, chap. VII.
Os juízos de Deus acham-se consignados nas leis dos bárbaros, foram
sanccionados e regulados pela legislação dos concilios visigóticos, e
podemos talvez dizêr que eram ainda invocados, quando já alvorecia a
nacionalidade portuguêsa. Em França puseram-n'os em vigôr as
Capitulares de Carlos Magno, e foram ao depois confirmados na
legislação do tempo de Carlos o Calvo[19].
[19] Desmaze, Supplices, prisons et grace en France, chap. II, III.
A ignorancia que na idade média fez da instrucção um privilégio da
classe sacerdotal, deixou que os juízos de Deus maculassem mais uma
página da história da humanidade. Intendendo-se que o homem,
creatura frágil, podia faltar á verdade, intendeu-se que a naturêza, que

no panteismo oriental so consubstancía com a divindade, essa não
podia mentir.
E assim, quando o juíz pretendia uma prova decisiva, consultava-se a
naturêza e tentava-se a Deus, pedindo-lhe uma revelação: sujeitava-se o
réu á prova do fôgo, da água fervente, do ferro em brasa, do veneno, da
cruz; e, se elle não saísse illeso destas provas bárbaras, é porque estava
realmente criminoso. Se elle estivesse innocente, Deus havia de
inverter as leis da naturêza, e fazêr que o fôgo ou os demais supplicios
não arrancassem um gemido, nem deixassem um vestigio na carne da
pobre víctima.
Para todas essas provas, havia formulários em latim, que podem ver-se
minuciosamente na collecção de Baluze, tom. II, col. 642 e seg. Por
agora, reproduziremos apenas uma dessas fórmulas, em linguagem
nossa:
«O culpado tomará na presença do todos o ferro em brasa, e o
conduzirá pelo espaço de nove pés; liguem-se-lhe as mãos ao ferro em
brasa, durante três noites, e, se ao depois apparecer illeso, dêm-se
graças a Deus; mas, se o ferro em brasa tiver escaldado, e se apparecer
rubôr e inflammação nos vestigios do ferro, seja julgado criminoso e
immundo[20].»
[20] Baluze, tom. II, col. 644.
* * * * *
Pois bem. Este símbolo, que nos é tão conhecido pela história da
penalidade medieval, encadeia-se com quási todos os símbolos
jurídicos através dos tempos e dos povos, e vai entroncar nas
instituições da India.
E só da India é que podiam derivar os juízos de Deus. Lá, no berço das
sociedades, a humanidade, ainda criança, sente-se subjugada pelo
império da naturêza. O homem, desprendendo-se do nada, ergue os
olhos e dobra os joelhos, adorando a natureza-mãi. Se os arreboes
purpureiam os horisontes, adora Mitrá; se o astro do dia se levanta,

adora Suryá; se os ventos agitam a floresta, adora os Maruts; se a
tempestade estrondeia nos céus, adora Indrá; se os riachos lhe
serpenteiam aos pés, adora
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 9
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.