A fundação da monarchia portugueza | Page 6

Antonio Vasconcellos
deu ao rei christão desthronado a hospitalidade
proverbial dos arabes, de que a historia da peninsula hespanhola
offerece repetidos exemplos. Affonso ficou em Toledo até o anno de
1072 em que Sancho rei de Castella foi morto com uma lançada por
Bellido Arnulfes diante dos muros de Samora.
Altos juizos de Deus! O prisioneiro de Sancho de Castella, o
clausurado de Sahagun, o principe desthronado e fugitivo, e o hospede
tranquillo dos adversarios mais encarniçados da sua raça, estava
destinado para ser um dos mais poderosos soberanos do seu tempo.

Tambem na nossa idade o prisioneiro de Strasburgo e de Bolonha, o
encarcerado de Ham, o principe desherdado e fugitivo, e o hospede
paciente dos inglezes, não parecia fadado para governar uma das
maiores nações da terra, e para vencer a aguia russa na Crimêa, e a
austriaca em Solferino; Napoleão III e Affonso VI podem comparar-se
n'este ponto, apesar dos oito seculos que os separam.
Affonso VI saíu de Toledo para voltar ao governo dos seus estados e
para reunir sob o seu dominio a Castella, Leão, as Asturias, a Rioja e a
Biscaia. A Galliza, descontente de Garcia, contra quem já se tinham
revoltado os de Entre Douro e Minho, não se oppoz á prisão do seu
soberano, e deixou-se encorporar na grande monarchia de Fernando
Magno, reconstituida agora por seu filho Affonso. Garcia morreu na
prisão.
Dizem de D. Affonso VI que depois de sair de Toledo para tornar a
reinar, o obrigára o Cid a jurar que não fôra cumplice de Bellido
Arnulfes na morte de D. Sancho. Deus sabe se o bom do Cid teve tal
escrupulo.
No fim de tudo taes patranhas se contam do Cid que nem a gente sabe o
que ha de acreditar! É certo porém que D. Garcia perdeu a corôa da
Galliza mas foi bem tratado na prisão onde ficou até morrer apesar de
ser irmão do rei. Rasões de estado! D'estas já por cá se viram!
Se os principes christãos andavam sempre em guerra, que por muitas
rasões se poderia chamar guerra civil, os arabes não viviam entre si em
união mais intima. A queda dos Beni-Umeyas foi seguida de graves
dissensões ao cabo das quaes a cidade de Toledo veiu em 1085 a caír
nas mãos de Affonso VI, cêrca de quatro seculos depois d'aquelle dia
em que Rodrigo, o ultimo rei dos wisigodos, saíra dos muros da capital
para ir acabar os seus dias na batalha do Chrissus.
Affonso VI soube sacrificar os designios ambiciosos de soberano
visinho, e de guerreiro christão, aos deveres da amisade agradecida.
Nas guerras entre o emir de Toledo e o de Sevilha, Al-Mamum teve
sempre por alliado a Affonso VI seu antigo hospede, e só depois da
morte do generoso arabe, e da expulsão de seu filho, é que o estandarte

christão tremulou na velha capital da monarchia wisigothica.
A posse de Toledo, e as victorias successivas de Affonso VI,
atemorisaram Ibn-Abed, emir de Sevilha, e inspiraram-lhe a idéa de
chamar de Africa os almoravides commandados por Abu-Yacub.
Foram elles que no dia 23 de outubro de 1086 destroçaram na batalha
de Zalaka junto a Badajoz os esquadrões do rei de Leão e de Castella.
Dezesete annos depois, o emir el-moslemym Iussuf era já senhor de
todo o territorio desde Saragoça até á margem esquerda do Tejo, e
Affonso VI, apesar do titulo pomposo de imperador, que a vasta área
dos seus estados lhe grangeára, apenas tinha alcançado algumas
victorias na parte occidental da peninsula hespanhola. Santarem, Lisboa
e Cintra tinham sido tomadas por elle em 1093, e o governo d'esse novo
territorio confiado a Sueiro Mendes irmão do lidador.
O imperador era então um dos mais poderosos principes da
christandade. Dos outros soberanos da Europa pouco tinha que receiar.
Na peninsula porém não podia ter descanso, emquanto os arabes
conservassem n'ella um imperio, grande pela extensão de terreno,
vigoroso pelo valor dos musulmanos, forte pela facilidade de receber
soccorros enviados de Africa, tranquillo pela moderação e brandura do
governo, e não menos importante pela cultura das sciencias, das letras e
das artes, e pelo desenvolvimento da agricultura, da industria e do
commercio.
O imperio arabe na peninsula hespanhola era já um estado florescente,
quando os christãos saíram das montanhas á voz de Pelagio, e
começaram a organisar mesmo nas cidades e na côrte uma existencia
mais de acampamento militar que de sociedade constituida. A missão
de Affonso VI era pois a guerra incessante contra os arabes.
Estas circumstancias attrahiam á côrte castelhana um grande numero de
fidalgos estrangeiros. Instigava-os a tendencia militar e aventureira da
epocha; impellia-os a idéa religiosa, e o desejo do triumpho completo
da cruz contra o crescente; e a estes nobres pensamentos juntava-se a
ambição não menos elevada de ganhar pela força do proprio braço
terras e
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