sua esperança, n'aquella sombria miseria, a tia
Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não
podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n'aquelle
casebre, sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados,
a chorar por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já
fizera o Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?
--Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer...
Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao
tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão
d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida,
Theodorico! Olha que é duro, menino!
Enternecido, prometti fallar á titi.
Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que
entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola,
emmagrecida no peccado.
E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não voltei
á rua da Fé.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube
pelo dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar
em segredo.
Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na
cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita,
de mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os
pequenos, no chão, rapavam um tacho d'açorda. E na alcova o Xavier,
enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de
escarros de sangue, tossia, despedaçadamente:
--És tu, rapaz?
--Então que é isso, Xavier?
Elle exprimiu, n'um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se
de costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi.
Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não
respondera. E, agora, ia mandar para o Jornal de Noticias um annuncio,
a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico
commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves
deixaria um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na
pagina d'um jornal.
--Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando
ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio.
Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um
Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo,
é que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos
trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
--Conta commigo, Xavier.
--Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á Concha.
Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi, solemnemente,
em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa,
desdobrou o Jornal de Noticias. E decerto achou logo o annuncio do
Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina
onde elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.
Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre,
os olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de
lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea
de pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu
ia lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o
primeiro pedaço de carne d'aquelle verão de miseria. Abri os labios.
Mas já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho
feroz:
--Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se
mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para
mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias,
acabou... Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que
padeça, que tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabeça, murmurei:
--E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não
mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto,
fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as
palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam
com saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no
Terreiro da Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu
peccado, a photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e
uma carta d'ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da
sua alma» e me pedia dezoito tostões! Eu cosera essas reliquias dentro
do fôrro d'um collete de pano, receando as incessantes rebuscas da titi,
por entre a minha roupa intima. Mas lá estavam, no bahú de que ella
guardava a chave, dentro do collete, fazendo uma dureza de cartão que
qualquer dia poderiam palpar os seus dedos desconfiados... E eu
acabava logo para a titi!
Abri devagarinho o
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