bahú, descosi o fôrro, tirei a carta deliciosa da
Thereza, a fita que conservára o aroma da sua pelle, e a sua
photographia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei
tudo, amabilidades e feições: e sacudi desesperadamente para o saguão
as cinzas da minha ternura.
N'essa semana não ousei voltar á rua da Fé. Depois, um dia que
choviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o meu guarda-chuva.
Um visinho, vendo-me espreitar de longe as janellas negras e mortas do
casebre, disse-me que o snr. Godinho, coitado, fôra para o hospital
n'uma maca.
Desci, triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepusculo
humido, tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de
repente o meu nome de Coimbra, lançado com alegria.
--Oh, Raposão!
Era o Silverio, por alcunha o Rinchão, meu condiscipulo, e
companheiro de casa das Pimentas. Estivera passando esse mez no
Alemtejo, com seu tio, ricaço illustre, o barão d'Alconchel. E agora, de
volta, ia vêr uma Ernestina, rapariguita loura, que morava no Salitre,
n'uma casa côr de rosa, com roseirinhas á varanda.
--Queres tu vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita,
a Adelia... Tu não conheces a Adelia? Então que diabo, vem vêr a
Adelia... É um mulherão!
Era, um domingo, noite de partida da titi; eu devia recolher
religiosamente ás oito horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão fallou
da brancura dos braços da Adelia: e eu comecei a caminhar ao lado do
Rinchão, enfiando as luvas pretas.
Munidos d'um cartucho de pasteis e de uma garrafa de Madeira,
encontrámos a Ernestina a coser um elastico nas suas botinas de
duraque. E a Adelia, estendida no sofá, de chambre e em saia branca,
com os chinelos cahidos no tapete, fumava um cigarro languido. Eu
sentei-me ao lado d'ella, commovido e mono, com o meu guarda-chuva
entre os joelhos. Só quando o Silverio e Ernestina correram dentro á
cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar á
Adelia, córando:
--Então a menina d'onde é?
Era de Lamego. E eu, novamente acanhado, só pude gaguejar que era
tristonho aquelle tempo de chuva. Ella pediu-me outro cigarro,
cortezmente, dizendo-me--o cavalheiro. Apreciei estes modos. As
mangas largas do seu roupão, escorregando descobriam braços tão
brancos e macios que entre elles a Morte mesma deveria ser deleitosa.
Fui eu que lhe offereci o prato onde a Ernestina collocára os pasteis.
Ella quiz saber o meu nome. Tinha um sobrinho que tambem se
chamava Theodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio, do
seu coração, enrodilhar-se no meu.
--Porque é que o cavalheiro não põe o guarda-chuva alli a um canto?
disse-me ella, rindo.
O brilho picante dos seus dentinhos miudos fez desabrochar dentro em
mim uma flôr de madrigal.
--É para não me tirar d'aqui d'ao pé da menina nem um instantinho que
seja.
Ella fez-me uma cocega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gôzo, bebi
o resto do Madeira que ella deixára no calice.
A Ernestina, poetica, e cantando o fado, aninhou-se nos joelhos do
Rinchão. Então a Adelia, revirando-se languidamente, puxou-me a
face--e os meus labios encontraram os seus no beijo mais sério, mais
sentido, mais profundo que até ahi abalára o meu sêr.
N'esse dôce instante, um relogio medonho, com o mostrador fingindo
uma face de lua, e que parecia espreitar-me de sobre o marmore d'uma
mesa do mogno, d'entre dois vasos sem flôres, começou a dar dez,
horas, fanhoso, ironico, pachorrento.
Jesus! era a hora do chá em casa da titi! Com que terror eu trepei,
esbaforido, sem mesmo abrir o guarda-chuva, as viellas escuras e
infindaveis que levam ao Campo de Sant'Anna! Em casa, nem tirei as
botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo, no sofá de
damasco, os oculos da titi, mais negros, assanhados, esperando por
mim e fuzilando. Ainda balbuciei:
--Titi...
Mas já ella gritava, esverdinhada de cólera, sacudindo os punhos.
--Relaxações em minha casa não admitto! Quem quizer viver aqui ha
de estar ás horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não,
emquanto eu fôr viva! E quem não lhe agradar, rua!
Sob a rajada estridente da indignação da snr.^a D. Patrocinio, padre
Pinheiro e o tabellião Justino tinham dobrado a cabeça embaçados. O
dr. Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha culpa, puxou
o seu pesado relogio d'ouro. E foi o bom Casimiro que interveio, como
sacerdote, como procurador, influente e suave.
--D. Patrocinio tem razão, tem muita razão em querer ordem em casa...
Mas talvez o nosso Theodorico se tivesse demorado um pouco mais no
Martinho, a ouvir fallar d'estudos, de compendios...
Exclamei amargamente:
--Nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive?
No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscipulo
meu, que ia lá buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã
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