A Relíquia | Page 7

Eça de Queirós
papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga,
padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu
corpo a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O
padre Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.
Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e foi
um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o
desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d'um anthraz. Passei
então para a divertida hospedagem das Pimentas--e conheci logo, sem
moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca
mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu
joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca;
embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne
com saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo
fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com
orgulho a alcunha de Raposão. Todos os quinze dias porém escrevia á
titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava
a severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas
rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces
desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que
consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir,
mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil.
Não ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e
antes de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no
oratorio. Eu proprio me condemnára a esta detestavel devoção!
--Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com
seccura, a titi.
E eu, sorrindo abjectamente:
--Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico
terço!...
Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste,

queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia
outro commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita
das Neves, o Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz
em Mangualde. Rico por morte de seu mano Abel, secretario da
Camara Patriarchal, o doutor aposentára-se, farto dos autos, e vivia em
ocio, lendo os periodicos, n'um predio seu na Praça da Figueira. Como
conhecêra o papá, e muitas vezes o acompanhará ao Mosteiro,
tratou-me logo com authoridade e por você.
Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido,
onde destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como
carvão. Raras vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta,
uma noticia pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na
Baixa!» Apenas uma fumaraça n'uma chaminé. Mas o bom Margaride,
em novo, n'um sombrio accesso d'imaginação, compuzera duas
tragedias; e d'ahi lhe ficára este gosto morbido d'exagerar e
d'impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle, saborêa o grandioso...»
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma
pitada.
Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas
vezes lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes
inteiras vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no
Mosteiro, quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos
amieiros. E mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em
sexta-feira de Paixão. Além d'isso, mesmo na minha presença, elle
gabava francamente á titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus
modos.
--O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V.
exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!
Eu córava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que
eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G.
Godinho. O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--«o Xavier,

teu primo, moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de
bigode louro, que fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos,
herdados de seu pai, dono d'uma cordoaria em Alcantara. O
commendador G. Godinho, mezes antes de morrer da sua pneumonia,
tinha-o recolhido por caridade á secretaria da Justiça, com vinte mil reis
por mez. E o Xavier agora vivia com uma hespanhola chamada Carmen,
e tres filhos d'ella, n'um casebre da rua da Fé.
Eu fui lá n'um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a
unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d'uma cadeira. O
Xavier toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen,
despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de
vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança
embrulhada n'um trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Immediatamente o Xavier, tratando-me por tu, fallou-me da tia
Patrocinio... Era a
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