seus respeitos á snr.^a D. Patrocinio das Neves.
Nós moravamos no Campo de Sant'Anna. Ao descer o Chiado, eu
parava n'uma loja de estampas, diante do languido quadro d'uma
mulher loura, com os peitos nús, recostada n'uma pelle de tigre, e
sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Chrispim, um
pesado fio de perolas. A claridade d'aquella nudez fazia-me pensar na
ingleza do snr. barão: e esse aroma, que tanto me perturbára no
corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na
rua cheia de sol, pelas sêdas das senhoras que subiam para a missa do
Loreto, espartilhadas e graves.
A titi, em casa, estendia-me a mão a beijar: e toda a manhã eu ficava
folheando volumes do Panorama Universal, na saleta d'ella, onde havia
um sofá de riscadinho, um armario rico de pau preto, e lithographias
coloridas, com ternas passagens da vida purissima do seu favorito santo,
o patriarcha S. José. A titi, de lenço rôxo carregado para a testa, sentada
á janella por dentro dos vidros, com os pés embrulhados n'uma manta,
examinava solicitamente um grande caderno de contas.
Ás tres horas enrolava o caderno; e de dentro da sombra do lenço
começava a perguntar-me doutrina. Dizendo o Credo, desfiando os
Mandamentos, com os olhos baixos, eu sentia o seu cheiro acre e
adocicado a rapé e a formiga.
Aos domingos vinham jantar comnosco os dois ecclesiasticos. O de
cabellinho encaracolado era o padre Casimiro, procurador da titi:
dava-me abraços risonhos; convidava-me a declinar _arbor arboris,
currus curri_; proclamava-me com affecto «talentaço.» E o outro
ecclesiastico elogiava o collegio dos Isidoros, formosissimo
estabelecimento de educação, como não havia nem na Belgica. Esse
chamava-se padre Pinheiro. Cada vez me parecia mais moreno, mais
triste. Sempre que passava por diante d'um espelho, deitava a lingua de
fóra, e alli se esquecia a estical-a, a estudal-a, desconfiado e aterrado.
Ao jantar o padre Casimiro gostava de vêr o meu appetite.
--Vai mais um bocadinho da vitellinha guisada? Rapazes querem-se
alegres e bem comidos!...
E padre Pinheiro, palpando o estomago:
--Felizes idades! Felizes idades em que se repete a vitella!
Elle e a titi fallavam então de doenças. Padre Casimiro, córadinho, com
o guardanapo atado ao pescoço, o prato cheio, o copo cheio, sorria
beatificamente.
Quando, na praça, entre as arvores, começavam a luzir os candieiros de
gaz, a Vicencia punha o seu chale velho de xadrez e ia levar-me ao
collegio. A essa hora, nos domingos, chegava o sujeitinho de cara
rapada e vastos collarinhos, que era o snr. José Justino, secretario da
confraria de S. José, e tabellião da titi, com cartorio a S. Paulo. No
pateo, tirando já o seu paletot, fazia-me uma festa no queixo, e
perguntava á Vicencia pela saude da snr.^a D. Patrocinio. Subia; nós
fechavamos o pesado portão. E eu respirava consoladamente--porque
me entristecia aquelle casarão com os seus damascos vermelhos, os
santos innumeraveis, e o cheirinho a capella.
Pelo caminho a Vicencia fallava-me da titi, que a trouxera, havia seis
annos, da Misericordia. Assim eu fui sabendo que ella padecia do
figado; tinha sempre muito dinheiro em ouro n'uma bolsa de sêda verde;
e o commendador Godinho, tio d'ella e da minha mamã, deixára-lhe
duzentos contos em predios, em papeis, e a quinta do Mosteiro ao pé de
Vianna, e pratas e louças da India... Que rica que era a titi! Era
necessario ser bom, agradar sempre á titi!
Á porta do collegio a Vicencia dizia «Adeus, amorzinho,» e dava-me
um grande beijo. Muitas vezes, de noite, abraçado ao travesseiro, eu
pensava na Vicencia, e nos braços que lhe vira arregaçados, gordos e
brancos como leite. E assim, foi nascendo no meu coração,
pudicamente, uma paixão pela Vicencia.
Um dia, um rapaz já de buço chamou-me no recreio lambisgoia.
Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um
murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Chrispim sahira dos
Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela
Vicencia desappareceu um dia, insensivelmente, como uma flôr que se
perde na rua.
E os annos assim foram passando: pelas vesperas de Natal accendia-se
um brazeiro no refeitorio, eu envergava o meu casacão forrado de baeta
e ornado d'uma gola d'astrakan; depois chegavam as andorinhas aos
beiraes do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias,
vinham braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés
d'ouro de Jesus; depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre
Casimiro mandava á titi um gigo d'uvas da sua quinta de Torres... Eu
comecei a estudar rhetorica.
* * * * *
Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para
os Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do
dr. Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me
n'um
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