triste, rosnou só «boas noites.» E da mesa, onde
folheava um grande livro de estampas, um homemzinho, de cara rapada
e collarinhos enormes, comprimentou, atarantado, deixando escorregar
a luneta do nariz.
Cada um d'elles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste
perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro,
amoravel, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse
as syllabas e dissesse The-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido
com a mamã, nos olhos. A titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor
de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes collarinhos
fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quiz saber se eu trazia
saudades de Vianna. Eu murmurei, atordoado:
--Sim, titi.
Então o padre mais idoso e nedio chegou-me para os joelhos,
recommendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre
obediente á titi...
--O Theodorico não tem ninguem senão a titi... É necessario dizer
sempre que sim á titi...
Eu repeti, encolhido:
--Sim, titi.
A titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da bocca. Depois disse-me
que voltasse para a cozinha, para a Vicencia, sempre a seguir pelo
corredor...
--E quando passar pelo oratorio, onde está a luz e a cortina verde,
ajoelhe, faça o seu signalzinho da cruz...
Não fiz o signal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratorio da titi
deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de sêda rôxa, com
paineis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do
Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos
de marfim e de madeira, com aureolas lustrosas, viviam n'um bosque
de violetas e de camelias vermelhas. A luz das velas de cera fazia
brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas á parede, em repouso,
como broqueis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um
docel, Nosso Senhor Jesus Christo era todo d'ouro, e reluzia.
Cheguei-me devagar até junto da almofada de velludo verde, pousada
diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da titi. Ergui para Jesus
crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céo
os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim,
de ouro, cravejados talvez de pedras: o seu brilho formava a luz do dia;
e as estrellas eram os pontos mais vivos do metal precioso,
transparecendo através dos véos negros, em que os embrulhava á noite,
para dormirem, o carinho beato dos homens.
Depois do chá, a Vicencia foi-me deitar n'uma alcovinha pegada ao seu
quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, ergueu-me a
face para o céo. E dictou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela
saude da titi, pelo repouso da mamã, e por alma d'um commendador
que fôra muito bom, muito santo, e muito rico, e que se chamava
Godinho.
* * * * *
Apenas completei nove annos, a titi mandou-me fazer camisas, um fato
de pano preto, e collocou-me, como interno, no collegio dos Isidoros,
então em Santa Isabel.
Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz
Chrispim, mais crescido que eu, filho da firma Telles, Chrispim & C.^a,
donos da fabrica do fiação á Pampulha. O Chrispim ajudava á missa
aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabellos compridos e louros,
lembrava a suavidade d'um anjo. Ás vezes agarrava-me no corredor e
marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos
devoradores; á noite, na sala, d'estudo, á mesa onde folheavamos os
somnolentos diccionarios, passava-me bilhetinhos a lapis,
chamando-me seu idolatrado o promettendo-me caixinhas de pennas
d'aço...
Á quinta-feira era o desagradavel dia de lavarmos os pés. E tres vezes
por semana o sebento padre Soares, vinha, de palito na bocca,
interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.
--Ora depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caiphás... Olá,
o da pontinha do banco, quem era Caiphás?... Emende! Emende
adiante!... Tambem não! Irra, cabeçudos! Era um judeu o dos peores...
Ora diz que, lá n'um sitio muito feio da Judêa, ha uma arvore toda
d'espinhos, que é mesmo d'arripiar...
A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e d'estalo, fechavamos a
cartilha.
O tristonho pateo de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa
da visinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar
uma fumaça do cigarro, ás escondidas, n'uma sala terrea onde aos
domingos o mestre de dansa, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos
decotados, nos ensinava mazurkas.
Cada mez a Vicencia, de capote e lenço, me vinha buscar depois da
missa, para ir passar um domingo com a titi. Isidoro Junior, antes de eu
sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes,
mesmo na bacia d'elle, dava-me uma ensaboadella furiosa,
chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até á porta, fazia-me
uma caricia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela
Vicencia os
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.