A Relíquia | Page 4

Eça de Queirós
o liteireiro, furioso,
praguejava, sacudindo o archote acceso. Em redor, dolente e negro,
rumorejava um pinheiral. O snr. Mathias, enfiado, tirou o relogio da
algibeira e escondeu-o no cano da bota.
Uma noite, atravessámos uma cidade onde os candieiros da rua tinham
uma luz jovial, rara e brilhante como eu nunca vira, da fórma d'uma
tulipa aberta. Na estalagem em que apeámos, o criado, chamado
Gonçalves, conhecia o snr. Mathias: e depois de nos trazer os bifes,
ficou familiarmente encostado á mesa, de guardanapo ao hombro,
contando coisas do snr. barão, e da ingleza do snr. barão. Quando
recolhiamos ao quarto, alumiados pelo Gonçalves, passou por nós,
bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e branca, com um
rumor forte de sêdas claras, espalhando um aroma d'almiscar. Era a
ingleza do snr. barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das
seges, eu pensava n'ella, rezando Ave-Marias. Nunca roçára corpo tão
bello, d'um perfume tão penetrante: ella era cheia de graça, o Senhor
estava com ella, e passava, bemdita entre as mulheres, com um rumor
de sêdas claras...

Depois, partimos n'um grande coche que tinha as armas do rei, e rolava
a direito por uma estrada lisa, ao trote forte e pesado de quatro cavallos
gordos. O snr. Mathias, de chinelas nos pés e tomando a sua pitada,
dizia-me, aqui e além, o nome d'uma povoação aninhada em torno
d'uma velha igreja, na frescura d'um valle. Ao entardecer, por vezes,
n'uma encosta, as janellas d'uma calma vivenda faiscavam com um
fulgor d'ouro novo. O coche passava; a casa ficava adormecendo entre
as arvores; através dos vidros embaciados eu via luzir a estrella de
Venus. Alta noite tocava uma corneta; e entravamos, atroando as
calçadas, n'uma villa adormecida. Defronte do portão da estalagem
moviam-se silenciosamente lanternas mortiças. Em cima, n'uma sala
aconchegada, com a mesa cheia de talheres, fumegavam as terrinas; os
passageiros, arripiados, bocejavam, tirando as luvas grossas de lã; e eu
comia o meu caldo de gallinha, estremunhado e sem vontade, ao lado
do snr. Mathias, que conhecia sempre algum moço, perguntava pelo
doutor delegado, ou queria saber como iam as obras da camara.
Emfim, n'um domingo de manhã, estando a choviscar, chegámos a um
casarão, n'um largo cheio de lama. O snr. Mathias disse-me que era
Lisboa; e, abafando-me no meu chale-manta, sentou-me n'um banco, ao
fundo d'uma sala humida, onde havia bagagens e grandes balanças de
ferro. Um sino lento tocava á missa; diante da porta passou uma
companhia de soldados, com as armas sob as capas d'oleado. Um
homem carregou os nossos bahús, entrámos n'uma sege, eu adormeci
sobre o hombro do snr. Mathias. Quando elle me poz no chão,
estavamos n'um pateo triste, lageado de pedrinha miuda, com assentos
pintados de preto: e na escada uma moça gorda cochichava com um
homem d'opa escarlate, que trazia ao collo o mealheiro das Almas.
Era a Vicencia, a criada da tia Patrocinio. O snr. Mathias subiu os
degraus conversando com ella, e levando-me ternamente pela mão.
N'uma sala forrada de papel escuro, encontrámos uma senhora muito
alta, muito secca, vestida de preto, com um grilhão d'ouro no peito; um
lenço rôxo, amarrado no queixo, cahia-lhe n'um bioco lugubre sobre a
testa; e no fundo d'essa sombra negrejavam dois oculos defumados. Por
traz d'ella, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dôres olhava
para mim, com o peito trespassado d'espadas.

--Esta é a titi, disse-me o snr. Mathias. É necessario gostar muito da
titi... É necessario dizer sempre que sim á titi!
Lentamente, a custo, ella baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu
senti um beijo vago, d'uma frialdade de pedra: e logo a titi recuou,
enojada.
--Credo, Vicencia! Que horror! Acho que lhe puzeram azeite no
cabello!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ella,
murmurei:
--Sim, titi.
Então o snr. Mathias gabou o meu genio, o meu proposito na liteira, a
limpeza com que eu comia a minha sopa á mesa das estalagens.
--Está bem, rosnou a titi seccamente. Era o que faltava, portar-se mal,
sabendo o que eu faço por elle... Vá, Vicencia, leve-o lá para dentro...
Lave-lhe essa ramella, veja se elle sabe fazer o signal da cruz...
O snr. Mathias deu-me dois beijos repenicados. A Vicencia levou-me
para a cozinha.
Á noite vestiram-me o meu fato de velludilho; e a Vicencia, séria,
d'avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam
cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como
as columnas d'um altar. A titi estava sentada no meio do canapé,
vestida de sêda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos
resplandecentes de anneis. Ao lado, em cadeiras tambem douradas,
conversavam dois ecclesiasticos. Um, risonho e nedio, de cabellinho
encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O
outro, moreno e
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