A Relíquia | Page 3

Eça de Queirós
e logo n'esse julho conheceu um cavalheiro de
Lisboa, o commendador G. Godinho, que estava passando o verão com
duas sobrinhas, junto ao rio, n'uma quinta chamada o Mosteiro, antigo
solar dos condes de Lindoso. A mais velha d'estas senhoras, D. Maria
do Patrocinio, usava oculos escuros, e vinha todas as manhãs da quinta
á cidade, n'um burrinho, com o criado de farda, ouvir missa a
Sant'Anna. A outra, D. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia
de cór os versos do Amor e Melancolia, e passava horas, á beira da
agua, entre a sombra dos amieiros, rojando o vestido branco pelas
relvas, a fazer raminhos silvestres.
O papá começou a frequentar o Mosteiro. Um guarda da alfandega
levava-lhe o violão; e emquanto o commendador e outro amigo da casa,
o Margaride, doutor delegado, se embebiam n'uma partida de gamão, e
D. Maria do Patrocinio rezava em cima o terço--o papá, na varanda, ao
lado de D. Rosa, defronte da lua, redonda e branca sobre o rio, fazia
gemer no silencio os bordões e dizia as tristezas do conde Ordonho.
Outras vezes jogava elle a partida de gamão: D. Rosa, sentava-se então
ao pé do titi, com uma flôr nos cabellos, um livro cahido no regaço; e o
papá, chocalhando os dados, sentia a caricia promettedora dos seus
olhos pestanudos.
Casaram. Eu nasci n'uma tarde de sexta-feira de Paixão; e a mamã
morreu, ao estalarem, na manhã alegre, os foguetes da Alleluia. Jaz,
coberta de goivos, no cemiterio de Vianna, n'uma rua junto ao muro,

humida da sombra dos chorões, onde ella gostava de ir passear nas
tardes de verão, vestida de branco, com a sua cadellinha felpuda que se
chamava Traviata.
O commendador e D. Maria não voltaram ao Mosteiro. Eu cresci, tive o
sarampo; o papá engordava; e o seu violão dormia, esquecido ao canto
da sala, dentro d'um sacco de baeta verde. N'um julho de grande calor,
a minha criada Gervasia vestiu-me o fato pesado de velludilho preto; o
papá poz um fumo no chapéo de palha; era o luto do commendador G.
Godinho a quem o papá muitas vezes chamava, por entre dentes,
«malandro.»
Depois, n'uma noite de entrudo, o papá morreu de repente, com uma
apoplexia, ao descer a escadaria de pedra da nossa casa, mascarado
d'urso, para ir ao baile das senhoras Macedos.
Eu fazia então sete annos; e lembro-me de ter visto, ao outro dia, no
nosso pateo, uma senhora alta e gorda, com uma mantilha rica de renda
negra, a soluçar diante das manchas de sangue do papá, que ninguem
lavára, e já tinham seccado nas lages. Á porta uma velha esperava,
rezando, encolhida no seu mantéo de baetilha.
As janellas da frente da casa foram fechadas; no corredor escuro, sobre
um banco, um candieiro de latão ficou dando a sua luzinha de capella,
fumarenta e mortal. Ventava e chovia. Pela vidraça da cozinha,
emquanto a Marianna, choramigando, abanava o fogareiro, eu vi passar
no largo da Senhora da Agonia, o homem que trazia ás costas o caixão
do papá. No alto frio do monte a capellinha da Senhora, com a sua cruz
negra, parecia mais triste ainda, branca e nua, entre os pinheiros, quasi
a sumir-se na nevoa; e adiante, onde estão as rochas, gemia e rolava,
sem descontinuar, um grande mar d'inverno.
Á noite, no quarto de engommar, a minha criada Gervasia sentou-me
no chão, embrulhado n'um saiote. De quando em quando, rangiam no
corredor as botas do João, guarda da alfandega, que andava a defumar
com alfazema. A cozinheira trouxe-me uma fatia de pão de ló.
Adormeci: e logo achei-me a caminhar á beira d'um rio claro, onde os
choupos, já muito velhos, pareciam, ter uma alma e suspiravam; e ao

meu lado ia andando um homem nú, com duas chagas nos pés, e duas
chagas nas mãos, que era Jesus, Nosso Senhor.
Passados dias, acordaram-me, n'uma madrugada em que a janella do
meu quarto, batida do sol, resplandecia prodigiosamente como um
prenuncio de coisa santa. Ao lado da cama, um sujeito risonho e gordo
fazia-me cocegas nos pés com ternura e chamava-me bréjeirote. A
Gervasia disse-me que era o snr. Mathias, que me ia levar para muito
longe, para casa da tia Patrocinio: e o snr. Mathias, com a sua pitada
suspensa, olhava espantado para as meias rôtas que me calçára a
Gervasia. Embrulharam-me no chale-manta cinzento do papá; o João,
guarda da alfandega, trouxe-me ao collo até á porta da rua, onde estava
uma liteira com cortinas d'oleado.
Começámos então a caminhar por compridas estradas. Mesmo
adormecido, eu sentia as lentas campainhas dos machos: e o snr.
Mathias, defronte de mim, fazia-me de vez em quando uma festinha na
cara, e dizia: «Ora cá vamos.» Uma tarde, ao escurecer, parámos de
repente n'um sitio ermo, onde havia um lamaçal;
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