fosse um parvo, o governo dava-lhe um subsidio até elle achar
o chafariz dos cavallos.
V
*Estreia parlamentar de Calisto*
Antes de apresentar-se na sala das sessões, Calisto Eloy de Barbuda leu
o Regimento interno da camara dos deputados, juntamente com um
collega transmontano, o abbade de Estevães, sujeito de annos, e
doutrina monarchico-absolutos.
O morgado de Agra embicou logo na fórma do juramento, e disse que
não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser
inviolavelmente fiel á carta constitucional. O abbade quiz amaciar-lhe a
rigidez de espiritos, absolvendo-o do perjurio, que não era serio, porque
já de si o juramento era irrisorio e mera brincadeira de nenhum peso na
balança da justiça divina.
E allegava o clerigo esclarecido que os representantes da nação, com
quanto jurassem fidelidade á religião-catholica-apostolica-romana,
eram aliás atheus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-n'o nas gazetas;
jurando fidelidade á nação, avexavam-n'a de tributos, e alguns a
queriam fundir na Hespanha. Comedia e comedoria! exclamava o
abbade. Se os deixarmos a elles jurar e mentir á sua vontade, a
monarchia portugueza d'aqui a pouco não terá mais realidade no
mappamundi que a ilha Berataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas
beatas do poeta Alceu!
A respeito das ilhas beatas do poeta Alceu, saiu-se Calisto de Barbuda
com uma despropositada torrente de citações, em que a paciencia do
padre esteve a pique. Era perigoso dar-lhe azo ás ejecções da sciencia
velha, que não havia abafar-lhe as valvulas ejaculatorias.
O sabio, lá na sua terra, nunca tivera auditorio digno; escutava-se a si
proprio; admirava-se e applaudia-se com perdoavel, senão legitima
vaidade; faltava-lhe, porém, alguma coisa, a qual coisa era o abbade de
Estevães.
Este clerigo, bem que tivesse exercido as funcções desembargatorias na
relação ecclesiastica de Braga, era menos lettrado que o antiquario de
Caçarelhos, mas um tanto mais illustrado em critica da historia. Por
delicadesa, fingia engulir as araras que o morgado lhe ministrava
guizadas pelo monge de Alcobaça Bernardo de Brito, por Fernão
Mendes e Miguel Leitão d'Andrade, e centenares de outros
escrevedores de polpa, que mentiram «mais do que permitte a força
humana.»
Convencido da irresponsabilidade seria do juramento parlamentar, foi
Calisto Eloy de Silos empossar-se da sua cadeira na representação
nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se, não teve
mão de si, e disse:
--Sr. presidente!
O abbade de Estevães ainda ciciou um cio, como quem lembrava ao
collega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta
n'aquelle acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinaria
reflexão, deixou violar o artigo 30.^o do titulo e ouviu-o.
Continuou Calisto:
--Sr. presidente! Nos primordios da humanidade, a boa fé dispensava os
juramentos: hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé
desappareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os
casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escripturas.
Abrahão jurou ao rei de Sodoma e ao rei Abimelech; Elieser a Abrahão;
e Jacob a Labão...
O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias,
observou:
--O sr. deputado está fóra das prescripções do regimento. Peço licença
para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.
--Eu concluo em duas palavras, tornou Calisto, conformando-me com o
regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual no seu
jurisprudencia civilis syntagma, diz que não deve exigir-se o juramento
quando póde temer-se o perjurio. Preceito de mui remontada
moralidade; sr. presidente! Preceito, cujo despreso, é a causa efficiente
das apostasias que deshonram, dos sacrilegios que condemnam a alma,
e estampam na testa dos precitos lemma de opprobrio indelevel. Disse.
E foi sentar-se, flauteando cromathicamente uma pitada, á beira do seu
amigo abbade de Estevães.
A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou
espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as
phrases, atirava á cara dos legisladores um murro indirecto. Tres brados
lhe haviam victoriado o cabeçalho do discurso: eram expansões de
deputados legitimistas, que entre si se ficaram victoriando de terem um
homem bastante audaz, se necessario fosse, para fallar ao imperante
como João Mendes Cicioso fallara a El-Rei D. Manuel.
--Fallou á portugueza, sr. morgado; mas
extemporaneamente--murmurou-lhe o abbade de Estevães.
--A verdade é de todas as horas, abbade--redarguiu Calisto--mal de nós
se havemos de esperar que ella caia a talho de fouce!... Deixem-me ir
assim, que os meus constituintes assim me querem, Catão e Cicero,
Hortensio e Demosthenes não fallavam pelo regimento. O conselheiro
que disse a Affonso IV «senão procuremos outro rei» não pediu licença
a presidente algum, nem viu no regimento se era hora de lh'o dizer. Eu
li de tento e vagar o regimento, amigo abbade; e a mim me quiz parecer
que tudo aquillo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer callar
aquelles cujos dizeres desagradam á presidencia, por
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