A Queda dum Anjo | Page 7

Camilo Castelo Branco
fosse um parvo, o governo dava-lhe um subsidio até elle achar
o chafariz dos cavallos.

V
*Estreia parlamentar de Calisto*
Antes de apresentar-se na sala das sessões, Calisto Eloy de Barbuda leu
o Regimento interno da camara dos deputados, juntamente com um
collega transmontano, o abbade de Estevães, sujeito de annos, e
doutrina monarchico-absolutos.
O morgado de Agra embicou logo na fórma do juramento, e disse que
não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser
inviolavelmente fiel á carta constitucional. O abbade quiz amaciar-lhe a
rigidez de espiritos, absolvendo-o do perjurio, que não era serio, porque
já de si o juramento era irrisorio e mera brincadeira de nenhum peso na

balança da justiça divina.
E allegava o clerigo esclarecido que os representantes da nação, com
quanto jurassem fidelidade á religião-catholica-apostolica-romana,
eram aliás atheus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-n'o nas gazetas;
jurando fidelidade á nação, avexavam-n'a de tributos, e alguns a
queriam fundir na Hespanha. Comedia e comedoria! exclamava o
abbade. Se os deixarmos a elles jurar e mentir á sua vontade, a
monarchia portugueza d'aqui a pouco não terá mais realidade no
mappamundi que a ilha Berataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas
beatas do poeta Alceu!
A respeito das ilhas beatas do poeta Alceu, saiu-se Calisto de Barbuda
com uma despropositada torrente de citações, em que a paciencia do
padre esteve a pique. Era perigoso dar-lhe azo ás ejecções da sciencia
velha, que não havia abafar-lhe as valvulas ejaculatorias.
O sabio, lá na sua terra, nunca tivera auditorio digno; escutava-se a si
proprio; admirava-se e applaudia-se com perdoavel, senão legitima
vaidade; faltava-lhe, porém, alguma coisa, a qual coisa era o abbade de
Estevães.
Este clerigo, bem que tivesse exercido as funcções desembargatorias na
relação ecclesiastica de Braga, era menos lettrado que o antiquario de
Caçarelhos, mas um tanto mais illustrado em critica da historia. Por
delicadesa, fingia engulir as araras que o morgado lhe ministrava
guizadas pelo monge de Alcobaça Bernardo de Brito, por Fernão
Mendes e Miguel Leitão d'Andrade, e centenares de outros
escrevedores de polpa, que mentiram «mais do que permitte a força
humana.»
Convencido da irresponsabilidade seria do juramento parlamentar, foi
Calisto Eloy de Silos empossar-se da sua cadeira na representação
nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se, não teve
mão de si, e disse:
--Sr. presidente!

O abbade de Estevães ainda ciciou um cio, como quem lembrava ao
collega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta
n'aquelle acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinaria
reflexão, deixou violar o artigo 30.^o do titulo e ouviu-o.
Continuou Calisto:
--Sr. presidente! Nos primordios da humanidade, a boa fé dispensava os
juramentos: hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé
desappareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os
casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escripturas.
Abrahão jurou ao rei de Sodoma e ao rei Abimelech; Elieser a Abrahão;
e Jacob a Labão...
O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias,
observou:
--O sr. deputado está fóra das prescripções do regimento. Peço licença
para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.
--Eu concluo em duas palavras, tornou Calisto, conformando-me com o
regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual no seu
jurisprudencia civilis syntagma, diz que não deve exigir-se o juramento
quando póde temer-se o perjurio. Preceito de mui remontada
moralidade; sr. presidente! Preceito, cujo despreso, é a causa efficiente
das apostasias que deshonram, dos sacrilegios que condemnam a alma,
e estampam na testa dos precitos lemma de opprobrio indelevel. Disse.
E foi sentar-se, flauteando cromathicamente uma pitada, á beira do seu
amigo abbade de Estevães.
A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou
espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as
phrases, atirava á cara dos legisladores um murro indirecto. Tres brados
lhe haviam victoriado o cabeçalho do discurso: eram expansões de
deputados legitimistas, que entre si se ficaram victoriando de terem um
homem bastante audaz, se necessario fosse, para fallar ao imperante
como João Mendes Cicioso fallara a El-Rei D. Manuel.

--Fallou á portugueza, sr. morgado; mas
extemporaneamente--murmurou-lhe o abbade de Estevães.
--A verdade é de todas as horas, abbade--redarguiu Calisto--mal de nós
se havemos de esperar que ella caia a talho de fouce!... Deixem-me ir
assim, que os meus constituintes assim me querem, Catão e Cicero,
Hortensio e Demosthenes não fallavam pelo regimento. O conselheiro
que disse a Affonso IV «senão procuremos outro rei» não pediu licença
a presidente algum, nem viu no regimento se era hora de lh'o dizer. Eu
li de tento e vagar o regimento, amigo abbade; e a mim me quiz parecer
que tudo aquillo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer callar
aquelles cujos dizeres desagradam á presidencia, por
Continue reading on your phone by scaning this QR Code

 / 67
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.