A Queda dum Anjo | Page 6

Camilo Castelo Branco

Não obstante, o descredito do seu classico deveras lhe doeu, mormente
pelo tom de mofa com que o cirurgião enxovalhou as cãs do honrado e
lusitanissimo escriptor Luiz Mendes.
Apenas convalescido, Calisto abria outro livro da mesma edade,
escripto por identico motivo, para averiguar se o author do Sitio de

Lisboa claudicára como patranheiro em materia de chafarizes.
O bacamarte consultado era a _Fundação, antiguidades e grandezas da
muito insigne cidade de Lisboa_, etc., escripto pelo capitão Luiz
Marinho de Azevedo.
--Cá está!--exclamou Barbuda em soliloquio--cá está explicada a minha
dôr de barriga! era destemperança do figado.
O deputado acabava de ler o seguinte periodo de Luiz Marinho:
«Encareceu Plinio muito a agua, que vinha a Roma da fonte Marcia, e
Vitruvio a das fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram
saborosas no gosto, sendo por esta causa muito sadias e proveitosas
para conservar saude. E posto que (sic) Luiz Mendes de Vasconcellos
queira que por estas propriedades tenha a agua do charariz d'El-Rei as
mesmas qualidades; a experiencia mostra que, sendo suave no gosto, o
não é nos effeitos, porque lhe attribuem os medicos a destemperança do
figado, que muitas pessoas padecem, e de que procedem varias
enfermidades.»
--Fie-se lá a gente!--monologou o deputado.--É preciso cuidado com os
classicos a respeito da agua de Lisboa.
E, proseguindo na leitura, encontrou confirmada a maravilha de se
afinarem as vozes com o uso da agua do chafariz d'El-Rei, por estes
termos:
«É causa das boas vozes dos musicos naturaes de Lisboa, ou que n'ella
moraram, que tanto lustram em sua real capella, e na da corte de
Madrid[5], conventos e egrejas cathedraes d'este reino e do de Castella:
excellencia que tambem se acha nas mulheres, cuja feminina voz
enleva os sentidos, como se experimenta ouvindo cantar as religiosas
dos mosteiros d'esta cidade, em que mais parece se ouvem córos de
anjos que vozes humanas.»
Á primeira vez que saiu, andou Calisto em demanda dos conventos de
freiras, e das festividades de cada um. Disseram-lhe, em face de um

repertorio, que a mais proxima festa era, no domingo immediato, em
Santa Joanna. Foi Calisto á festa para ouvir cantar as freiras. Não lhe
pareceu cantoria o que ouviu: eram tres narizes roufinhando destoantes.
Calisto saiu do templo, foi ao palratorio, chamou a madre-porteira, e
disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recommendasse ás
senhoras cantoras a agua do chafariz d'El-Rei. A madre ficou passada
do disparate, e voltou-lhe as costas.
Como quer que o morgado da Agra de Freimas não fosse homem que
estudasse as materias perfunctoriamente, quiz esquadrinhar a respeito
de aguas toda a substancia d'este importante elemento.
Decepções sobre decepções!
Quando morára na Alfama, observára elle que, n'aquelle bairro, as
mulheres eram sardentas, rôxo-terra, e crespas de pelle. Pois o classico
Marinho saía-lhe com este desmentido aos seus proprios olhos:
«Tem mais outra propriedade occulta a agua do chafariz (d'El-Rei) que
é conservar os rostos das mulheres, que com ella se lavam, em uma
alvura engraçada, e côr natural tão encarnada, que não necessita de
unturas, nem confecções, com que ellas se envelhecem antes de tempo:
_o que se vê claramente na vantagem que as de Alfama levam ás dos
outros bairros no carão, rosto mimoso, e côr que logo se conhece por
natural_; e, se bastára isto, por desengano ás que as usam postiças, não
fôra pequeno o fructo, que se tirára de ler este paragrapho, havendo
quem lh'o recitasse.»
Calisto Eloy certamente não iria recitar o paragrapho a nenhuma
senhora pallida e magra, depois da incivil resposta, que lhe deu a
porteira de Santa Joanna, e mais ainda com a desconfiança em que o
puzeram os bons authores da sua predilecção.
Parece, porém, que elle andava aporfiado em afogar o seu recto juizo
nas aguas de Lisboa. Lêra o deputado que tambem o _chafariz dos
cavallos da rua Nova_ tinha prodigiosas virtudes em cura de molestias
d'olhos. Procurou a rua Nova, que o terramoto de 1755 sotterrára;
procurou o chafariz, que segundo elle, devia de estar na rua dos

Capellistas ou Algibebes successoras d'aquella rua. Ninguem lhe dava
conta do _chafariz dos cavallos_; e alguns logistas interrogados
suppuzeram que o provinciano não podia beber em fonte que não
tivesse aquella applicação.[6]
O erudito respondia aos chacoteadores.
--Pois saibam que se perdeu um mirifico chafariz! Resam os meus
livros que as saluberrimas aguas d'esta fonte perdida tinham a
propriedade occulta de engordar as cavalgaduras que bebiam d'ella; e
acrescenta Marinho d'Azevedo, textualissimas palavras: _e quando ella
faz tão conhecidos effeitos nos animaes, os fizera nos corpos humanos,
se a beberam em sua fonte_.
Um bacharel, que ouvira as lastimas de Calisto, disse a um visinho a
meia-voz:
--Este homem parece que tem uma cavalgadura magra no corpo!
Com estas zombarias é que em Portugal os sabios são premiados... Se
Calisto
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