A Queda dum Anjo | Page 5

Camilo Castelo Branco
viam bracejar, e

lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sabio treslêra,
ou coisa má lhe entrara no corpo. A sr.^a D. Theodora Figueirôa, vendo
o marido assim tresnoitado, seguia-o ás vezes, de madrugada,
espreitava-o de um cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se tambem,
dizendo: «Dão-me com o homem doido!»
Chegou o tempo de partir para a capital.
O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros,
nenhum dos quaes tinha menos de cento e cincoenta annos.
Seguia-se, na conducta dos machos portadores, uma carga de persunto
e orelheira, substancia quotidiana da alimentação de Calisto Eloy.
Depois, outra carga de ancoretas de vinho velho, e na entrecarga uma
garrafeira com duas duzias de garrafas de vinho, que competia
antiguidade com a fundação da companhia.
A guarda-roupa do procurador dos povos era modesta, salvo o chapéo
armado, calção de tafetá e espadim, com que elle, na qualidade de
fidalgo cavalleiro, costumava contribuir para a magestade das
procissões de Miranda, pegando ao pallio.
A pessoa de Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda foi em
liteira, e chegou a Lisboa ao decimo quinto dia de jornada, trabalhada
de perigos, superiores á descripção de que somos capaz.
De proposito, saltamos por cima dos pormenores da partida, para não
descrever o quadro lastimoso do apartamento de Calisto e Theodora.
O apartamento de Theodora e Calisto era titulo para dois capitulos de
lagrimas.

IV
*Asneiras da erudição*

Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou
casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, n'aquella porção da
Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento á espera de
archeologo competente.
Ao cabo de tres dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, suppondo
que os lamaçaes de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçaes
em que elle desastradamente escorregára, e d'onde saíra mal-limpo, e
assoviado por marujos e collarejas, seus visinhos mais chegados. Mau
agouro! A primeira chimera de Calisto, seu tanto ou quanto scientifica,
atascara-se na lama d'aquella parte de Lisboa, que devia de ser a inclita
Ulissea de Luiz de Camões!
O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa
lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quiz-lhe parecer
que a atmosphera da capital não cheirava bem.
Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do sitio de Lisboa etc. por
Luiz Mendes de Vasconcellos, e leu:
«...E assim, de todo o territorio de Lisboa, parece que da terra, fontes e
rios, respiram suavissimos vapores, amigos da natureza humana;
porque é coisa certissima que a benignidade dos ares d'este sitio, não só
é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandissimo
proveito para algumas doenças, etc...»
Calisto Eloy fechou o livro, e disse de si para comsigo, tomando uma
vez de rapé:
--O meu classico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da
minha membrana pituitaria.
E alcatroou segunda vez, as ventas com uma pitada desinfectante.
Pareceu-lhe tambem pesada e salôbra a agua.
Recorreu ao seu classico Luiz Mendes, no artigo agua, e leu que o
chafariz de El-Rei dava uma lympha gostosa e de suave quentura, a

qual limpava a garganta de toda a roquidão, e afinava as vozes, e assim,
dizia o classico, _não errará quem disser que ella é causa das boas
vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e tambem dos bons
carões que conservam as mulheres_.
Em quanto aos bons carões das mulheres, Calisto, que, de um relancear
honesto de olhos, observára os rostos pallidos e esgrouviados de
algumas senhoras de Lisboa, não podendo arguir de fallacia o dizer de
Luiz Mendes, attribuiu á degeneração dos costumes e raças o
descarnado e amarellido das caras; no tocante á suavidade das vozes,
ficou indeciso, não querendo desmentir o seiscentista, nem formar
conceito por uns grunhidos de cantaróla barbara com que os vendilhões
pregoavam os comestiveis.
Todavia, como a agua do chafariz de El-Rei aclarava o orgão vocal, e
Calisto, á força de berrar ao pé da açuda e azenhas, estava um tanto
rouco, mandou buscar um barril d'aquella salutifera agua, que o
Mendes de Vasconcellos compára á das fontes camenas. Bebeu á tripa
fôrra o deputado, e teve uma dôr de barriga precursora de febres quartãs.
Valeu-se ainda do seu classico, e por conta d'elle mandou buscar á
Pimenteira outro barril de agua, a qual, diz o citado author, _se busca
para os doentes de febres_.
O velho criado e enfermeiro, quando viu o seu amo encharcado e cada
vez peior, foi de moto proprio em cata do cirurgião, o qual deu o
morgado rijo e fero em quinze dias com algumas beberagens quinadas.
Desde então, Calisto Eloy não bebeu senão vinho, e melhorou da
garganta e do espirito, um tanto quebrantado, recitando, a cada garrafa
que abria, o proverbio da sagrada escriptura:--_Vinum bonum laetifical
cor hominis_.[4]
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