A Queda dum Anjo | Page 8

Camilo Castelo Branco
Lucrecia Borgia. Saiu da platéa frio de horror e protestou, em presen?a de Deus e do abbade, nunca mais contribuir com oito tost?es para a exposi??o das chagas asquerosas da humanidade. Rompeu-lhe ent?o do imo peito esta exclama??o sentida: Amici, noctem perdidi! Melhor me f?ra estar lendo o meu Euripides e Seneca, o tragico! Medéa n?o mata os filhos cantando, como a scelerada Lucrecia! As devassid?es postas em musica, d?o bem a entender que gera??o esta é! Brinca-se com o crime, abafando-se os gemidos da humanidade com o stridor das trompas e dos zabumbas. é um tripudio isto, amigo abbade! Quem sae do seio da natureza rude, e de repente se acha à lavareda d'estes focos das grandes cidades, é que atina com a providencial phylosophia d'estas tramoias de theatros!
Assanhou o abbade de Estev?es o azedume do fidalgo, dizendo-lhe que o estado subsidiava o theatro de S. Carlos com vinte contos de réis annuaes. Calisto fez pé atraz, e exclamou:
--Obstupui!... O abbade zomba!... O estado!... o meu collega disse o estado!
--Sim o thesouro... confirmou o clerigo.
--A res publica? o dinheiro da na??o?
--Certamente: pois de quem hade ser o dinheiro, sen?o da na??o?
--Pois eu e os meus constituintes estamos pagando para estas cantilenas do theatro de Lisboa!
--Vinte contos de réis.
Calisto Eloy correu a m?o pela fronte humedecida de suor civico, e sentou-se nas escadas da egreja de S. Roque, por que ao espanto, colera e d?r d'alma seguiram-se-lhes caimbras nas pernas. Minutos depois, ergueu-se taciturno, despediu-se do abbade, e foi para casa.
Os alvores da primeira manh? acharam-no passeando e declamando na estreita saleta do seu aposento. Via-se-lhe no rosto a pallidez dos Fabricios.
ás onze horas entrou na camara. Dir-se-hia que entrava Cicero a delatar a conjura??o de Catilina. Deu nos olhos dos seus tres correligionarios que entre si disseram:
--Calisto vae fazer alguma interpella??o de grande alcance!
Acabava de sentar-se quando um deputado do Porto se ergueu, e disse:
--Sr. presidente. Muito a meu pezar, e talvez da camara, volto de novo a expender as raz?es já tres vezes inutilmente expendidas sobre o dever, e justi?a com que o Porto reclama um subsidio para o seu theatro lyrico. Sr. presidente...
--Pe?o a palavra! bradou Calisto Eloy, erguendo-se inteiri?o e fulminante--Pe?o a palavra!
O representante do Porto expendeu a quarta edi??o peorada das suas idéas, sobre o dever e justi?a, com que o theatro de S. Jo?o reclamava subsidio, e sentou-se.
--Tem a palavra o sr. Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, disse o presidente.
O morgado da Agra escorvou-se de rapé, trombeteou a pitada, e orou d'este theor:
--Sr. presidente. Em Grecia e Roma as festas annuaes eram solemnisadas com espectaculos. Os cidad?os timbravam em se dispenderem aporfiadamente para o maior realce das representa??es theatraes. Na Grecia, o archonte eponymo, a cargo de quem o estado delegava as despezas das representa??es, esmava o dispendio de cada uma em dois talentos, 3:250$000 réis, pouco mais ou menos da nossa moeda. Este dispendio faziam-no espontaneamente os ricos; e se era o thesouro nacional, que adiantava as despezas, a concorrencia convidava pelo pre?o diminutissimo do theorikon ou entrada, que correspondia ao vintem da nossa moeda. E de Pericles em diante, sr. presidente, tomou o estado á sua conta o pagamento das entradas dos pobres. Entre os romanos, eram os poderosos, como Lepido e Pompeu, e, ao diante, os imperadores, que sustentavam do seu bolsinho as representa??es theatraes. Os imperios opulentos, sr. presidente, os imperios, que digeriam a substancia do universo, os imperios que edificavam theatros para trinta mil espectadores, n?o impunham aos povos a obriga??o de se privarem do necessario para abrilhantarem Athenas ou Roma, com luxuosas superfluidades. Os serranos das provindas do Lacio n?o eram constrangidos a pagarem as delicias dos patricios romanos. Estes, sr. presidente, quando queriam divertir-se em espectaculos theatraes, pagavam-os, e regalavam a gente pobre em vez de a obrigarem a entrar no erario com o estipendio dos actores. (_Sussurro e alguns ?apoiados? provocados pelo sussurro_.)
Sr. presidente--continuou o orador, tomando rapé com a soffreguid?o de quem teme que o raio inspirativo se arrefente--sr. presidente! Eu tenho o desgosto de ter nascido n'um paiz, em que o mestre-escola ganha cento e noventa réis por dia, e as cantarinas, segundo me dizem, ganham trinta e quarenta moedas por noite. Eu sou de um paiz, sr. presidente, em que se pede ao povo o subsidio litterario para pagar com elle as tramoias da Lucrecia Borgia. Eu sou de um paiz, pobrissimo, em que a veia da na??o exangue soffre cada anno a sangria de algumas duzias de contos para sustentar comediantes, farcistas, funambulos e dansarinas impudicas! Sr. presidente, v. ex.^a sorriu-se, vejo que a camara está sorrindo, e eu ouso dizer a v. ex.^a e aos meus collegas, como o poeta mantuano: _sunt lacrimae rerum_. Aqui é o ponto de se carpirem por seus filhos aquelles, que se cuidam
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