A Queda dum Anjo | Page 9

Camilo Castelo Branco
muito avantajados em civilisa??o a seus avós. Aqui é o ponto de nos alembrarmos dos israelitas livres, que sorriam em Jerusalem, e choravam depois escravos ás margens do rio estranho. Depois será o declamarmos com o epico:
Em Babylonia, sobre os rios, quando De ti, Si?o sagrada, nos lembramos, Alli com gran saudade nos sentamos O bem perdido, miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando
Pe?o á camara que repare nos tres versos, que completam a quadra e a prophecia:
Os instrumentos musicos deixando Nos estranhos salgueiros penduramos,
Hic, sr. presidente:
Quando aos cantares que já em ti cantamos Nos estavam imigos incitando.
Nos cantares, sr. presidente, é que bate o ponto do meu discurso: (Hilaridade: susurro nas galerias: o presidente tange a campainha).
O orador:--Sr. presidente! que me n?o queiram persuadir de que estou em casa de orates! Que é isto? Que bailar d'ebrios é este em volta de Portugal moribundo? Como podem rir-se os enviados do povo, quando um enviado do povo exclama: N?o tireis á na??o o que ella vos n?o póde dar, governos! N?o espremais o ubre da vacca faminta, que ordenhareis sangue! N?o queiraes converter os clamores do povo em cantorias de theatro! N?o vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho os ratinhados cobres das suas economias, para regalos da capital, em quanto elle se priva do aprezigo de uma sardinha, por que n?o tem uma pogeia com que compral-a.
E vinte contos e trinta contos de subsidios que moralidade fomentam, que lampadas accendem nos altares da civilisa??o? Eu pe?o á camara que leia attentamente o discurso theologico do padre Ignacio de Camargo, lente no real collegio de Salamanca, ácerca dos theatros. N?o menos fervorosamente pe?o a v. ex.^a e ás camaras que leiam as mirificas paginas do nosso oratoriano Manuel Bernardes, sobre representa??es theatraes. O que s?o comedias? Responda por mim o eminente moralista, e mais que todos vernaculissimo escriptor: ?Os assumptos das comedias pela maior parte s?o impuros cheios de lascivos amores, de galanteios profanos, de papeis amorosos, de rondas, passeios, musicas, dadivas, visitas, solicita??es torpes, finezas loucas, empenhos desatinados, chimeras, emprezas impossiveis, que as solicita ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim, uma porta falsa, um descuido do pae, ou do irm?o, ou do marido da dama, e tudo isto costuma parar em uma communica??o deshonesta, em um incesto, ou em um adulterio, em que ha muitos lances torpes, louvores lisongeiros da formosura, express?es affectadas de amor, promessas de constancia, competencias de affectos, temores, ciumes, suspeitas, sustos, desespera??es, e em summa, uma gentilica idolatria, ajustada pontualmente ás infames leis de Venus e Cupido, e aos torpes documentos de Ovidio no livro de Arte amandi.?
Vozes da galeria: Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de varios sujeitos. Gargalhada compacta).
O orador: Sr. presidente! Eu irei contar aos povos, que me aqui mandaram, as gargalhadas com que fui recebido no seio da representa??o nacional, por que ousei dizer que um paiz carregado de dividas n?o instaura divertimentos attentatorios dos bons costumes com o dinheiro da na??o. Irei dizer aos meus constituintes que se desfa?am das arrecadas e cord?es de suas mulheres e filhas, para enfeitarem as gargantas despeitoradas das Lucrecias Borgias que custam quarenta libras por noite!
Sr. presidente, nossos avós, os coevos d'el-rei D. Manuel e D. Jo?o III, tiveram theatros. Era no tempo em que as frotas da India rompiam Téjo acima carregadas de oiro. O Plauto portuguez deliciava os pa?os dos reis, e os pateos e tablados do povo. Quando se abriu o erario para locupletar o alto engenho de Gil Vicente? Quando foi necessario ir mundo fóra em cata de gritadores que vendem t?o caro o ar dos pulm?es vibrado no mechanismo da garganta?
Uma voz: Fez-se a civilisa??o depois.
O orador: E a pobreza tambem. A civilisa??o que canta e dan?a, em quanto tres partes do paiz choram. A civilisa??o dos civilisados que dizem: Coronemus nos rosis antequam marcessant[9]. A civilisa??o do perdulario irrisorio, que traja de luzente lemiste no exterior, e aconchêga da pelle uma camisa surrada e fetida. Magnifica civilisa??o! N?o sei de selvagens que nol-a possam invejar, e queiram cambiar comnosco a sua selvatiqueza!
Sr. presidente gosem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua civilisa??o theatral. Dispendam-se, arruinem-se, doudejem com essas fic??es e visualidades, que relembram factos de alto escandalo que n?o deviam ser vistos á luz da civilisa??o, que o meu illustre collega preconisa. Se gostam, n?o serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a racionalidade de seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justi?a e da pobreza do paiz, é que se n?o sizem os povos provinciaes para manuten??o dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem pagar a mim e aos meus visinhos as notas garganteadas dos ganha-p?es, que n?o tem na sua terra officio honesto em que vivam com
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