A Queda dum Anjo | Page 7

Camilo Castelo Branco
nas gazetas; jurando fidelidade á na??o, avexavam-n'a de tributos, e alguns a queriam fundir na Hespanha. Comedia e comedoria! exclamava o abbade. Se os deixarmos a elles jurar e mentir á sua vontade, a monarchia portugueza d'aqui a pouco n?o terá mais realidade no mappamundi que a ilha Berataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas beatas do poeta Alceu!
A respeito das ilhas beatas do poeta Alceu, saiu-se Calisto de Barbuda com uma despropositada torrente de cita??es, em que a paciencia do padre esteve a pique. Era perigoso dar-lhe azo ás ejec??es da sciencia velha, que n?o havia abafar-lhe as valvulas ejaculatorias.
O sabio, lá na sua terra, nunca tivera auditorio digno; escutava-se a si proprio; admirava-se e applaudia-se com perdoavel, sen?o legitima vaidade; faltava-lhe, porém, alguma coisa, a qual coisa era o abbade de Estev?es.
Este clerigo, bem que tivesse exercido as func??es desembargatorias na rela??o ecclesiastica de Braga, era menos lettrado que o antiquario de Ca?arelhos, mas um tanto mais illustrado em critica da historia. Por delicadesa, fingia engulir as araras que o morgado lhe ministrava guizadas pelo monge de Alcoba?a Bernardo de Brito, por Fern?o Mendes e Miguel Leit?o d'Andrade, e centenares de outros escrevedores de polpa, que mentiram ?mais do que permitte a for?a humana.?
Convencido da irresponsabilidade seria do juramento parlamentar, foi Calisto Eloy de Silos empossar-se da sua cadeira na representa??o nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se, n?o teve m?o de si, e disse:
--Sr. presidente!
O abbade de Estev?es ainda ciciou um cio, como quem lembrava ao collega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta n'aquelle acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinaria reflex?o, deixou violar o artigo 30.^o do titulo e ouviu-o.
Continuou Calisto:
--Sr. presidente! Nos primordios da humanidade, a boa fé dispensava os juramentos: hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé desappareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escripturas. Abrah?o jurou ao rei de Sodoma e ao rei Abimelech; Elieser a Abrah?o; e Jacob a Lab?o...
O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias, observou:
--O sr. deputado está fóra das prescrip??es do regimento. Pe?o licen?a para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.
--Eu concluo em duas palavras, tornou Calisto, conformando-me com o regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual no seu jurisprudencia civilis syntagma, diz que n?o deve exigir-se o juramento quando póde temer-se o perjurio. Preceito de mui remontada moralidade; sr. presidente! Preceito, cujo despreso, é a causa efficiente das apostasias que deshonram, dos sacrilegios que condemnam a alma, e estampam na testa dos precitos lemma de opprobrio indelevel. Disse.
E foi sentar-se, flauteando cromathicamente uma pitada, á beira do seu amigo abbade de Estev?es.
A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as phrases, atirava á cara dos legisladores um murro indirecto. Tres brados lhe haviam victoriado o cabe?alho do discurso: eram expans?es de deputados legitimistas, que entre si se ficaram victoriando de terem um homem bastante audaz, se necessario fosse, para fallar ao imperante como Jo?o Mendes Cicioso fallara a El-Rei D. Manuel.
--Fallou á portugueza, sr. morgado; mas extemporaneamente--murmurou-lhe o abbade de Estev?es.
--A verdade é de todas as horas, abbade--redarguiu Calisto--mal de nós se havemos de esperar que ella caia a talho de fouce!... Deixem-me ir assim, que os meus constituintes assim me querem, Cat?o e Cicero, Hortensio e Demosthenes n?o fallavam pelo regimento. O conselheiro que disse a Affonso IV ?sen?o procuremos outro rei? n?o pediu licen?a a presidente algum, nem viu no regimento se era hora de lh'o dizer. Eu li de tento e vagar o regimento, amigo abbade; e a mim me quiz parecer que tudo aquillo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer callar aquelles cujos dizeres desagradam á presidencia, por via de regra, mancommunada com o governo.
--Prudentia in omnibus, diz o sabio--retorquiu o abbade.[7]
O morgado accudiu logo:
--Estote prudentes, sicut serpentes et simplices sicut columbae, disse Jesus, o sabio dos sabios.[8]

VI
*Virtuosas parvoi?adas*
A estreia parlamentar de Calisto de Barbuda fez hyperbolico estrondo nos sal?es da aristocracia, legitimista, que abriu suas portas ao esperan?oso Berryer de Portugal.
Algum tempo se andou furtando o morgado ás solicitadas apresenta??es. Impediam-n'o o natural acanhamento de provinciano, e o affecto entranhado aos seus classicos, que lhe eram o deleite das horas feriadas do dia, e dos ser?es do inverno.
Como á for?a, f?ra elle uma noite, ao theatro lyrico, em companhia do abbade de Estev?es, que amava a musica pelo muito amor que tinha á guitarra, delicias da sua mocidade, e consoladora da velhice, já saudosa do tempo em que o cora??o lhe gemia nos bord?es do instrumento apaixonado.
Calisto inteirou-se do enredo da opera, e assistiu em convuls?es ao espectaculo, que era a
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