A Queda dum Anjo | Page 6

Camilo Castelo Branco
fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram saborosas no gosto, sendo por esta causa muito sadias e proveitosas para conservar saude. E posto que (sic) Luiz Mendes de Vasconcellos queira que por estas propriedades tenha a agua do charariz d'El-Rei as mesmas qualidades; a experiencia mostra que, sendo suave no gosto, o n?o é nos effeitos, porque lhe attribuem os medicos a destemperan?a do figado, que muitas pessoas padecem, e de que procedem varias enfermidades.?
--Fie-se lá a gente!--monologou o deputado.--é preciso cuidado com os classicos a respeito da agua de Lisboa.
E, proseguindo na leitura, encontrou confirmada a maravilha de se afinarem as vozes com o uso da agua do chafariz d'El-Rei, por estes termos:
?é causa das boas vozes dos musicos naturaes de Lisboa, ou que n'ella moraram, que tanto lustram em sua real capella, e na da corte de Madrid[5], conventos e egrejas cathedraes d'este reino e do de Castella: excellencia que tambem se acha nas mulheres, cuja feminina voz enleva os sentidos, como se experimenta ouvindo cantar as religiosas dos mosteiros d'esta cidade, em que mais parece se ouvem córos de anjos que vozes humanas.?
á primeira vez que saiu, andou Calisto em demanda dos conventos de freiras, e das festividades de cada um. Disseram-lhe, em face de um repertorio, que a mais proxima festa era, no domingo immediato, em Santa Joanna. Foi Calisto á festa para ouvir cantar as freiras. N?o lhe pareceu cantoria o que ouviu: eram tres narizes roufinhando destoantes. Calisto saiu do templo, foi ao palratorio, chamou a madre-porteira, e disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recommendasse ás senhoras cantoras a agua do chafariz d'El-Rei. A madre ficou passada do disparate, e voltou-lhe as costas.
Como quer que o morgado da Agra de Freimas n?o fosse homem que estudasse as materias perfunctoriamente, quiz esquadrinhar a respeito de aguas toda a substancia d'este importante elemento.
Decep??es sobre decep??es!
Quando morára na Alfama, observára elle que, n'aquelle bairro, as mulheres eram sardentas, r?xo-terra, e crespas de pelle. Pois o classico Marinho saía-lhe com este desmentido aos seus proprios olhos:
?Tem mais outra propriedade occulta a agua do chafariz (d'El-Rei) que é conservar os rostos das mulheres, que com ella se lavam, em uma alvura engra?ada, e c?r natural t?o encarnada, que n?o necessita de unturas, nem confec??es, com que ellas se envelhecem antes de tempo: _o que se vê claramente na vantagem que as de Alfama levam ás dos outros bairros no car?o, rosto mimoso, e c?r que logo se conhece por natural_; e, se bastára isto, por desengano ás que as usam posti?as, n?o f?ra pequeno o fructo, que se tirára de ler este paragrapho, havendo quem lh'o recitasse.?
Calisto Eloy certamente n?o iria recitar o paragrapho a nenhuma senhora pallida e magra, depois da incivil resposta, que lhe deu a porteira de Santa Joanna, e mais ainda com a desconfian?a em que o puzeram os bons authores da sua predilec??o.
Parece, porém, que elle andava aporfiado em afogar o seu recto juizo nas aguas de Lisboa. Lêra o deputado que tambem o _chafariz dos cavallos da rua Nova_ tinha prodigiosas virtudes em cura de molestias d'olhos. Procurou a rua Nova, que o terramoto de 1755 sotterrára; procurou o chafariz, que segundo elle, devia de estar na rua dos Capellistas ou Algibebes successoras d'aquella rua. Ninguem lhe dava conta do _chafariz dos cavallos_; e alguns logistas interrogados suppuzeram que o provinciano n?o podia beber em fonte que n?o tivesse aquella applica??o.[6]
O erudito respondia aos chacoteadores.
--Pois saibam que se perdeu um mirifico chafariz! Resam os meus livros que as saluberrimas aguas d'esta fonte perdida tinham a propriedade occulta de engordar as cavalgaduras que bebiam d'ella; e acrescenta Marinho d'Azevedo, textualissimas palavras: _e quando ella faz t?o conhecidos effeitos nos animaes, os fizera nos corpos humanos, se a beberam em sua fonte_.
Um bacharel, que ouvira as lastimas de Calisto, disse a um visinho a meia-voz:
--Este homem parece que tem uma cavalgadura magra no corpo!
Com estas zombarias é que em Portugal os sabios s?o premiados... Se Calisto fosse um parvo, o governo dava-lhe um subsidio até elle achar o chafariz dos cavallos.

V
*Estreia parlamentar de Calisto*
Antes de apresentar-se na sala das sess?es, Calisto Eloy de Barbuda leu o Regimento interno da camara dos deputados, juntamente com um collega transmontano, o abbade de Estev?es, sujeito de annos, e doutrina monarchico-absolutos.
O morgado de Agra embicou logo na fórma do juramento, e disse que n?o jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel á carta constitucional. O abbade quiz amaciar-lhe a rigidez de espiritos, absolvendo-o do perjurio, que n?o era serio, porque já de si o juramento era irrisorio e mera brincadeira de nenhum peso na balan?a da justi?a divina.
E allegava o clerigo esclarecido que os representantes da na??o, com quanto jurassem fidelidade á religi?o-catholica-apostolica-romana, eram aliás atheus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-n'o
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