Mas não é este, reconhece-o Foville, o unico modo por que o delirio de
grandezas póde produzir-se; algumas vezes succede que as concepções
ambiciosas se installam primitivamente, dando-se então o caso de
surgirem depois idéas de perseguição, por uma sorte de propagação
regressiva que, ao fim de um certo tempo, acaba por nivelar as
situações. Qual é agora o mecanismo de transição? «É difficil, escreve
Foville, crêr-se um doente na posse de direitos á fortuna e ao mando,
figurar-se descendente de uma familia illustre, e não se sentir vexado
pela modestia da posição que occupa ou pela exiguidade dos recursos
de que dispõe. N'isto vê elle um signal de injustiça, que attribue á acção
de inimigos poderosos; crê-se, pois, victima de manobras hostis e
fabrica assim um systematico delirio de perseguições, secundario agora
e consequencia das idéas de grandezas»[1].
[1] Foville, Loc. cit., pag. 347.
É ainda, como se vê, um processo logico o destinado; segundo Foville,
a explicar a passagem do delirio ambicioso ao de perseguições; toda a
vesania parcial, portanto, qualquer que tenha sido o seu ponto de
partida e qualquer que haja de ser o seu termo, se desenrola sob a
dependencia do raciocinio e dentro da esphera consciente da ideação.
Os casos em que o delirio de grandezas succede immediatamente a
allucinações de caracter agradavel e lisongeiro, são extremamente raros;
a interpretação dos erros sensoriaes, isto é, um processo consciente e
reflectido, é ainda d'esta vez origem da doença.
Referindo-se á doutrina de Morel, Foville declara não a acceitar,
porque o delirio hypocondriaco, ponto de partida necessario, segundo
aquelle auctor, dos delirios de perseguições e de grandezas, só
excepcionalmente o encontrou.
De quanto vem de ser exposto a conclusão a tirar é esta:
Existe um delirio systematisado de grandezas que, no seu periodo de
estado, se combina sempre com idéas de perseguição, que é
invariavelmente acompanhado de allucinações auditivas e que tanto
póde originar-se, por via deductiva, de um preexistente delirio
persecutorio, como nascer d'emblèe. Não sendo um episodio morbido,
nem mesmo a phase evolutiva de uma vesania anterior, porque póde ser
e é muitas vezes primitivo, esse delirio constitue uma doença com foros
de autonomia e direitos a uma designação privativa: a megalomania.
Tal é, em resumo, a memoria de Foville na parte consagrada ao delirio
parcial de grandezas.
Depois dos importantes trabalhos de Lasègue e Foville, a psychiatria
franceza não nos offerece, dentro d'este periodo de analyse, estudo que
tenha feito progredir pela interferencia de pontos de vista novos o
conhecimento dos delirios systematisados. O livro publicado por
Legrand du Saulle, sob o titulo de Delirio de perseguições, em 1871,
valioso, certamente, pela copia de observações e pelos detalhes de
analyse clinica, nada tem, no fundo, de original, embora tentem
proclamar o contrario estas ambiciosas palavras do prefacio: «A
despeito da sua extrema frequencia e dos seus tão claros caracteres
distinctivos, o delirio de perseguições achou-se confundido com a
melancolia de Pinel, com a lypemania de Esquirol, com a monomania
depressiva de Baillarger; é ahi que eu vou buscal-o para o estudar nas
suas diferentes phases, para o constituir de toutes pièces e fazer d'elle
uma especie á parte»[1]. Dezenove annos antes fizera Lasègue, como
vimos, o que n'esta passagem se annuncia. O trabalho de Legrand du
Saulle, excepção feita dos capitulos consagrados ao tratamento, á
medicina legal e ao contagio do delirio, que nada teem que vêr com a
constituição scientifica da doença, não é senão um desenvolvimento da
memoria de Lasègue, cuja ordem de exposição adopta e cujas
expressões mesmo não raro se apropria.
[1] Legrand du Saulle, Le Délire des persécutions, pag. 11.
Como Lasègue, Legrand du Saulle descreveu dois periodos no delirio
de perseguições: um, de começo, exteriorisado por uma inquietação
indefinivel e de nenhum modo comparavel á do homem normal que tem
um grande interesse compromettido; outro, de estado, caracterisado
pela definitiva systematisação das idéas delirantes formando um
romance invariavel para cada doente.
Como Lasègue, Legrand du Saulle caracterisa a inquietação do
primeiro periodo comparando-a á cephalalgia e ao arrepio que são
muitas vezes os precursores de graves doenças communs, mas que em
si mesmos nada teem de preciso.
Como Lasègue, Legrand du Saulle explica a transição do primeiro ao
segundo periodo por um acto de reflexão do perseguido, por um
verdadeiro raciocinio. «O doente, escreve Legrand du Saulle, diz a si
proprio e aos outros que não são naturaes as inquietações e angustias
que experimenta, que lhes não encontra causa no meio em que vive, no
estado da propria saude, no da propria fortuna. No seu passado
experimento grandes infortunios, mas sabia o motivo d'elles e não eram
os mesmos os seus soffrimentos, não tinham o caracter vago e
indefinido dos actuaes. Este mal-estar tão grande, estas impressões tão
penosas e tão injustificadas devem ter uma causa secreta. E é assim

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