A Paranoia | Page 6

Julio de Mattos
de original e novo existe no
trabalho de Foville é a maneira de estudar a génese do delirio de
grandezas e as relações d'elle com a doença de Lasègue.
Segundo Foville, na loucura parcial, de que são escólas o delirio de
perseguições e a megalomania, toda a symptomatologia essencial se
reduz a concepções delirantes e erros sensoriaes, podendo estas duas
ordens de factos manter entre si relações diversas, que importa muito
considerar para a comprehensão da pathogenia. Ou as concepções
delirantes se apresentam primeiro, apparecendo as illusões e
allucinações como um facto secundario da doença, ou, pelo contrario, a
esphera sensorial é primitivamente affectada e só depois irrompem as
concepções chimericas.
Ora, segundo Foville, não é de modo nenhum indifferente para a
natureza mesma da doença que a successão das duas ordens de
symptomas se realise n'um sentido ou n'outro, porque o
allucinado-delirante é, em regra, um perseguido que póde tornar-se
megalomano, ao passo que o delirante-allucinado é mais vezes um
megalomano que póde vir a ter idéas de perseguição. A razão d'isto, no
dizer de Foville, vem de que na loucura parcial as allucinações
primitivas são, como estabelecera Lasègue, preponderantemente, senão
exclusivamente as do ouvido, de um caracter, em regra, penoso ao
principio e de molde, portanto, a gerarem um delirio depressivo. Ora,
sendo a hypothese do allucinado-delirante mais frequente que a do
delirante-allucinado, é tambem mais vulgar o perseguido-megalomano
que o megalomano-perseguido.
Posto isto, que serve para mostrar que não é meramente accidental a

passagem de um delirio a outro, Foville, estreitando mais o assumpto,
deriva á explicação do modo intimo por que ella se realisa.
A transição (mais frequente, como foi dito) do delirio de perseguição
ao de grandezas opera-se, ao vêr de Foville, por um processo logico.
«Depois, diz elle, de terem por mais ou menos tempo attribuido as
proprias allucinações a inimigos desconhecidos, contentando-se com
explical-as por uma palavra mais ou menos obscura e mysteriosa,
certos lypemaniacos allucinados dizem a si mesmos: Factos d'esta
ordem não podem passar-se, no estado social em que vivemos, sem a
intervenção de pessoas influentes e altamente collocadas; essas só,
portanto, são as instigadoras dos nossos tormentos. Outros, ao contrario,
reconhecendo que não succumbem nunca de um modo completo aos
perigos de que se sentem cercados; suppõem ter amigos occultos, mas
de um grande poder, que os protegem. Esta ordem de idéas imprime
desde então o seu cunho ao conjunto das concepções e allucinações: os
doentes fallam de grandes personagens que vêem por toda a parte,
desconhecem a identidade real dos individuos, que os cercam e crêem
que imperadores, imperatrizes e principes os visitam ou lhes enviam
mensagens. No meio do delirio melancolico as idéas de grandeza
adquirem realmente uma importancia preponderante. Mas as coisas
podem ir mais longe ainda. Impressionados pela desproporção entre a
sua posição burgueza e o poder de que devem dispôr os seus inimigos
para os attingirem, a despeito de tudo; entre o apagado papel que
desempenham no mundo e os moveis imperiosos que podem explicar o
encarniçamento com que são perseguidos, alguns d'estes doentes
acabam por a si proprios perguntarem se realmente são tão pouco
importantes como parecem. Uma nova perspectiva se abre diante do
seu atormentado espirito: não é já a dos outros, mas a propria
personalidade que aos seus olhos se transforma. Para que os persigam
d'este modo, dizem elles, é preciso que um alto interesse se dê, e isso só
se comprehende porque elles façam sombra a gente rica e poderosa,
porque tenham, elles proprios, direito a uma fortuna e a uma posição de
que fraudulentamente os despojaram, porque pertençam a uma classe
elevada de que foram afastados por circumstancias mais ou menos
mysteriosas, porque não sejam seus verdadeiros paes os que como taes
consideram, porque pertençam, emfim, a uma alta estirpe, as mais das

vezes real»[1].
[1] Foville, La folie avec prédominence du délire des grandeurs, pag.
345.
E accrescenta: «Estas idéas terão, sobretudo, tendencia a produzir-se
nos casos em que, já antes de doente, o individuo teve de soffrer no seu
orgulho ou nos seus interesses pelo facto da irregularidade ou do
mysterio do proprio nascimento. Assim, temos notado que esta fé
n'uma origem illustre, que esta crença n'uma imaginaria fortuna é
relativamente frequente nos filhos naturaes que véem a cahir na
loucura. São elles principalmente os preparados para ás idéas de
perseguição juntarem um novo romance em que dominam as
concepções de grandeza, as substituições ao nascer, as confusões de
pessoas»[1].
[1] Foville, Loc. cit., pag. 346.
Como se vê, Foville não faz senão seguir a orientação psychologica de
Lasègue, que explicava pela intervenção de um raciocinio a passagem,
no delirio de perseguições, do periodo prodromico ao de estado. Um
processo logico, essencialmente deductivo e syllogistico preside
tambem, segundo Foville, á génese das idéas ambiciosas que derivam
de um delirio persecutorio.
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