A Paranoia | Page 4

Julio de Mattos
doentes que a custo se lhe surprehende o primeiro grau,
prolonga-se e arrasta-se em outros, que só muito gradualmente e por
uma progressão bem sensivel e bem apreciavel attingem a construcção
do seu romance delirante.
Do mal-estar caracteristico do primeiro periodo diz Lasègue que elle se
não parece em nada com a inquietação ainda a mais viva do homem
normal; é indefinivel, accrescenta, como os symptomas que annunciam
e fazem presentir a invasão das doenças graves. O periodo de estado,
esse, é como a floração da psychose: o romance systematico
desenvolve-se pelo reconhecimento dos perseguidores--a policia, o
jesuitismo, os magnetisadores, a maçonaria, os physicos, etc.
Passando ao estudo dos symptomas, Lasègue põe em relevo o papel
que desempenham na doença as falsas sensações auditivas. «O orgão
do ouvido, escreve o eminente professor, fornece as primeiras
sensações sobre que se exerce a intelligencia pervertida. O doente ouve
retalhos de conversas que interpreta e se applica; os mesmos ruidos que
naturalmente se produzem,--a passagem de um trem, os passos de uma
pessoa que sobe ou desce uma escada, uma porta que se abre ou fecha,
são objecto dos seus commentarios».[1] Fallando, em seguida, das
allucinações auditivas, declara-as as unicas compativeis com o delirio
de perseguições; e accrescenta: «Basta que um doente accuse visões
para que eu não hesite em affirmar que elle pertence a outra cathegoria
de delirantes»[2]. Na mesma ordem de idéas escreve ainda: «Qualquer
que seja a epocha em que ellas se declarem, as allucinações pertencem
sempre ao quadro das auditivas; não é demais a minha insistencia sobre
este caracter, que considero pathognomonico»[3]. Todavia as
allucinações do ouvido, tão importantes e de tão vasto papel, não são
para Lasègue um phenomeno constante na psychose que descreve: «A
allucinação do ouvido, diz elle, não é nem a consequencia obrigada,
nem o antecedente necessario do delirio de perseguições»[4]. Os

perseguidos podem, segundo elle, não experimentar nunca allucinações;
limitando-se a fundar inducções delirantes sobre sensações anditivas
reaes, alguns ha que percorrem todos os periodos da doença.
[1] Lasègue, Le délire des persécutions in Ètudes médicales, tom. 1.,
pag. 554.
[2] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.
[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.
[4] Lasègue, Loc. cit., pag. 555.
Lasègue não refere allucinações além das auditivas: «As outras
sensações de que os perseguidos se queixam, diz elle, reduzem-se a
impressões nervosas»[3]. De resto, estas mesmas impressões devem
antes lançar-se á conta do hysterismo que á do delirio de perseguições:
«As mulheres, diz elle, offerecem os exemplos mais frequentes--sopros
internos, subitos calores, entorpecimentos, dores atrozes e passageiras e
os outros accidentes tão moveis da hysteria»[4].
[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 556.
[4] Lasègue, Loc. cit., pag. 557.
Como a symptomatologia e a marcha da doença, a pathogenia d'ella
mereceu tambem as attenções de Lasègue. Segundo elle, o delirio
procederia sempre da necessidade que o alienado sente de explicar as
sensações anormaes do periodo inicial, e resultaria, portanto, de uma
consciente elaboração logica. «A crença n'uma perseguição, diz elle,
não é senão secundaria; provoca-a a necessidade de dar uma explicação
a impressões morbidas provavelmente communs a todos os doentes e
que todos referem á mesma causa»[1]. Por um raciocinio, pois, passaria
o perseguido do vago mal-estar do periodo prodromico ao delirio
systematisado e quasi invariavel que caracterisa a doença em plena
floração. O facto inicial seria um phenomeno confuso da sensibilidade,
uma perturbação emotiva, o phenomeno intellectual, o delirio, seria
ulterior e nascido do primeiro. «É, diz Lasègue, depois de um certo

tempo de preoccupação e de resistencia que o alienado procura
remontar á causa dos seus soffrimentos, e passa assim do primeiro ao
segundo periodo. A transição faz-se então por este invariavel raciocinio:
os males que soffro são extraordinarios; tenho experimentado bem mais
duros golpes, mas concebia-os, descobria-lhes mais ou menos o motivo;
agora encontro-me em condições extranhas que não dependem nem da
minha saude, nem da minha posição, nem do meio em que vivo: é
preciso que alguma coisa de exterior, de independente de mim
intervenha; ora eu soffro e sou desgraçado: só inimigos podem ter
interesse em me magoar; devo, pois, crêr que intenções hostis são a
causa das impressões que experimento»[2].
[1] Lasègue, Loc. cit., pag. 552.
[2] Lasègue, Loc. cit., pag. 552.
Decorrido o periodo prodromico e attingida a systematisação delirante,
a doença deixaria, segundo Lasègue, de acompanhar-se de grandes
perturbações de sentimentos. Ha perseguidos que, mudando
constantemente de casa, fatigando incessantemente magistrados e
auctoridades com interminaveis queixas, conservam, todavia, uma
certa egualdade de humor «Nunca vi nenhum, diz o auctor, cahir em
melancolia continua, reagir por odios violentos ou meditar
vinganças»[3].
[3] Lasègue, Loc. cit., pag. 551.
Occupando-se da etiologia, Lasègue nota que o maximo de frequencia
do delirio de perseguições se realisa entre os 35 e os 50 annos e que
esta psychose ataca de preferencia as mulheres: segundo a sua
estatistica,
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