no olhar da minha formosa desconhecida lia-se em letras de fogo a
mesma confissão inebriante:
Pieno d'amor Mi balza il cor.
IV
Tinha acabado a opera. Levantei-me e saí.
Fiz um esforço sobre mim, não querendo olhar para o camarote fatal. A
pessoa que o occupára durante a noite produzira em mim uma
impressão tal que cheguei a ter medo... medo da influencia pasmosa
que ella ía tomando sobre o meu pobre coração.
Oh! fatalidade! Quando cheguei ao corredor, o primeiro vulto, que
passou por diante de mim, foi o vulto elegante e nobre da gentil
desconhecida. Ia só!
Tive como que uma vertigem, quando ella, ao passar, me lançou um
d'esses olhares que endoidecem o homem de rasão mais fria, que
lançam no inferno o mais virtuoso santo do paraizo.
Não tive forças para luctar contra a fascinação irresistivel d'esse olhar.
Se elle tinha sobre mim a influencia magnetica do olhar de José
Balsamo sobre a pobre Lorenza ideada por Alexandre Dumas! Debalde
a pobre italiana se torcia desesperada debaixo d'aquelle jugo oppressor,
debalde oppunha toda a força da sua vontade e do seu odio á tenacidade
diabolica do terrivel magnetisador, debalde resistia com todo o ardor da
sua devoção, com todo o vigor da sua alma virginal áquelle poder
incomprehensivel, mas horrendamente verdadeiro; tinha de recuar
diante d'esse olhar, como diante d'uma espada chammejante, até caír
oppressa e desesperada aos pés de José Balsamo. Então esse corpo
quebrado pela resistencia, reclinava-se nos braços da voluptuosidade, e
a voz que ia terrivel a bradar: «Odeio-te», terminava supplicante a
balbuciar: «Adoro-te».
Ao vêl-a, disse eu commigo mesmo: «Não quero, não quero ceder a
esse imperio inexplicavel.» E minutos depois, surprehendia-me a
seguil-a apressadamente pelas ruas de Lisboa.
Ha occasiões em que nos vêmos obrigados a acreditar em forças
sobrenaturaes que nos attrahem e nos repellem, é quando a nossa
vontade se aniquila, e quando as leis da nossa organisação são
violentamente revogadas por um despotismo estranho.
Submetto esta reflexão á consideração dos illustres materialistas que
me escutam!
V
A desculpa que eu dei a mim mesmo, quando apesar de todos os meus
protestos me surprehendi a seguir a senhora de negro, foi a desculpa da
curiosidade.
Com effeito, dizia eu commigo, tirando philosophicamente baforadas
de fumo do charuto que acabára de accender no momento em que
passou por diante de mim a formosa desconhecida; o que ha mais
natural? Encontro uma linda mulher em S. Carlos, linda como poucas, e
original a mais não poder ser. Vejo-a no camarote sósinha, e torno a
vêl-a, saíndo a pé, e ainda só. Não tenho nada que fazer, e por
conseguinte sigo-a. É naturalismo.
E a voz da consciencia murmurava-me ao ouvido:
--É o brilho da chamma tentadora, ó doida borboleta, é o olhar
fascinador da serpente, ó ave descuidosa.
--Ora adeus, respondia a voz da minha apparente philosophia, prejuizo,
superstição, fanatismo, como dizia o tenente Boutraix de um dos
romances de Carlos Nodier. Vou offerecer-lhe o meu braço.
A senhora que eu seguia caminhava lentamente a quinze passos adiante
de mim, quando muito. Passava ella então defronte da egreja dos
Martyres. Puz o chapéu ao lado com modos conquistadores, colloquei o
charuto ao canto da bocca, e accelerei o passo.
Apesar d'isso, e apesar da minha bella não alterar por fórma alguma o
seu andamento, não diminuia, pelo menos sensivelmente, a distancia
que nos separava. O vulto elegante da senhora de negro, ao passar por
diante dos candieiros de gaz, revelava-se em toda a sua riqueza de
fórmas, em toda a magestade do seu porte airoso. Havia uma suprema
distincção no seu modo de andar, mas apesar d'isso havia um não sei
quê de mysterioso n'aquelle mover de estatua, lento e inteiriçado, que
fazia uma impressão pouco agradavel.
Chegámos assim á rua Nova do Carmo; ella voltou para baixo; eu
segui-a.
A distancia conservava-se a mesma. Mas, como ia diminuindo o
numero das pessoas que caminhavam para aquelles sitios, saindo, como
nós, de S. Carlos, eu tomei uma resolução definitiva, e comecei a dar
grandes passadas para apanhar finalmente aquella mulher que me fugia
incessantemente como esse caçador das lendas do norte, que foge
sempre, sem perder um palmo de terreno, mas sem poder tambem
desapparecer, á sua matilha infernal.
Nem assim pude diminuir a distancia que me separava d'esse vulto
extraordinario.
E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio, sem que a bulha dos
seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias.
Chegámos ao Rocio. Eu começava a estar suado. Despi, sem affrouxar
o passo, o paletot que me incommodava, e pul-o aos hombros.
Depois dei a andar com dobrada rapidez.
A senhora de negro caminhou pelo Rocio na direcção do Passeio.
Chegámos ao largo de Camões.
Nem uma pollegada diminuira a distancia que mediava entre nós.
E o vulto parecia escorregar magestoso
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