e sombrio, sem que a bulha dos
seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias.
Eu apertava as mãos na cabeça, porque sentia uma torrente de fogo a
inundar-me o cerebro, e a rasão a abandonar-me.
A noite era sombria, e no estado em que estava pareceu-me sinistro
devéras o aspecto d'essa massa do Passeio Publico, envolto n'um manto
de trevas.
A quinze passos adiante de mim caminhava sempre elegante e distincto
o vulto negro da minha gentil desconhecida.
Perdi a cabeça e deitei a correr, litteralmente a correr, atraz d'ella. A
bulha da corrida produzia um som lugubre, e fazia-me estremecer de
vez em quando. O suor escorria-me em fio pela cara abaixo.
Saimos da rua Oriental do Passeio, entrámos na calçada do Salitre,
chegámos á esquina da travessa do Moreira, e eu não conquistára um
palmo de terreno.
E o vulto parecia escorregar magestoso e sombrio, sem que a bulha dos
seus passos acordasse um só echo nas ruas solitarias.
Quando ali chegámos, a desconhecida entrou resolutamente na travessa,
e eu parei. Sentia o coração palpitar-me com violencia, e... tive medo,
confesso o.
Era tão extraordinario o que me estava succedendo, que este sentimento,
devem confessal-o, era um pouco desculpavel.
Comtudo venci a timidez passageira, e entrei resolutamente n'essa rua
tão deserta.
Quando a minha desconhecida chegou ao pé de uma casa isolada no
meio da travessa, parou, voltou-se para mim, e bradou com uma voz
melodiosissima:
--Ámanhã á meia-noite, debaixo d'esta janella.
Eu estaquei attonito de surpreza.
VI
Descrever-lhes a lucta que se travou no meu espirito, quando voltando
para casa me fui sentar á mesa de trabalho, e comecei a reflectir fria e
pausadamente na aventura nocturna, seria contar-lhes a historia longa e
fastidiosa do combate da rasão com as minhas tendencias para o
sobrenatural.
Dir-lhes-hei, resumindo, que sem attender a outra coisa que não fosse a
seducção inexplicavel, que me attraía para esse ente incomprehensivel,
fui no dia seguinte á meia-noite ao rendez-vous aprazado.
Soava não sei em que relogio a ultima badalada da meia-noite, quando
se abriu a janella, e appareceu ante os meus olhos deslumbrados o
formoso rosto da gentil desconhecida.
Balbuciei phrases sem sentido, mas a lingua pegou-se-me ao céo da
bocca, e não pude dizer uma palavra que se entendesse.
--Porque me seguiu hontem? perguntou ella com uma voz melodiosa e
triste, como o gemer da brisa nos cyprestes.
--Porque a amo.
--Sabe quem eu sou?
--Que me importa! Quem vae perguntar ao anjo que nos afaga em
sonho o nome com que o distinguem nas phalanges celestiaes?
--E ama-me?
--Mais do que a vida!
--Só?!
Que poder incrivel tinha aquella mulher sobre mim? Não sei; sei que
lhe respondi com o olhar inflammado:
--Mais do que Deus!
--Não estranha o mysterio em que me envolvo?
--Não sei. Este amor é uma paixão fatal. Virgem ou devassa, candida
ou profanada, anjo ou demonio, amo-a cegamente, sem me importar
com o passado nem com o futuro, desejando só ter o presente meu, só
meu. Este amor é para mim um vinho que embriaga, e se no fundo da
taça encontrar veneno, que importa? morrerei abençoando as horas da
embriaguez. Isto é uma loucura, bem sei, mas se podesse conhecer a
atonia moral em que o meu espirito tem existido! Se soubesse como eu
anhelo por estas commoções extraordinarias, que devoram n'um minuto
a existencia de um homem! Já vê quão pouco exigente eu sou; não me
negue um raio d'essa aureola d'amor que lhe circunda a fronte. Essa luz
tenuissima transformal-a-hei em chamma esplendida, que ha de
illuminar as trevas do meu viver prosaico.
--Acceito o seu amor, se essas palavras não o exagaram. Não queira
penetrar no mysterio que me envolve. Quando fôr necessario, eu
mesma o rasgarei, e confie em mim, ha de encontrar-me digna do seu
amor. Entretanto creia e espere. Adeus.
--Já?
--Não me posso demorar nem um minuto.
--Oh! mas diga-me uma palavra consoladora. Este amor immenso não
encontrou echo no seu coração?
--Amo-o.
--Mas com um amor semelhante ao meu, inebriante, immenso?
--Immenso... como a eternidade.
E fechou a janella, deixando-me ficar extatico e cada vez mais
espantado da estranheza dos seus modos.
VII
Assim continuou todas as noites aquelle amor excentrico. Todas as
noites eu tomava a firme resolução de não tornar lá, e sempre as
badaladas da meia-noite me surprehendiam na travessa do Moreira, por
baixo da janella fatal.
No tempo em que me succedeu esta aventura, tratavam meus paes do
meu casamento com uma menina rica, que não desgostava de mim, e
por quem eu, não sentindo amor, não sentia tambem antipathia.
Era ella uma menina capaz de inspirar uma affeição fraternal, mas
nunca uma paixão a um espirito arrebatado como este meu.
Era bonita, mas um typo vulgar, horrivelmente vulgar. A pobre menina
não tinha
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