mundo opprime-me o coração. A minha alma está sequiosa de
amor, e este apparece-me sempre escoltado pelas conveniencias,
trazendo sobre o rosto formoso a mascara ridicula dos interesses
materiaes, ou a mascara odiosa do capricho sensual. Amor! amor! mas
um amor como o teu, ó casta e pura Amelia, como o teu, ó Julieta, ó
noiva gentil de Romeu e da sepultura, quero um d'esses amores
sublimes, e, se elle não se encontra na terra, surge dos tumulos, ó
pallida virgem por quem eu anhelo, e mostra-me ao menos n'um
relampago as mysteriosas alegrias da eternidade!»
N'isto levantei a cabeça, e os meus olhos involuntariamente fixaram-se
n'um camarote, que ficava pouco distante do logar que eu occupava na
platéa. Uma senhora de belleza maravilhosa estava sósinha n'esse
camarote, e encarava-me com uma attenção extraordinaria. Não sei
porque gelou-se-me o sangue nas veias, e fiquei extatico a contemplar
aquella esplendida formosura.
Raras vezes tenho encontrado um rosto assim! A correcção das linhas,
a pureza dos contornos, a magestade do perfil deixavam na sombra os
mais perfeitos modelos da antiga estatuaria. Praxíteles quebraria
desesperado as estatuas e o cinzel, se lhe fosse dado contemplar as
inflexões suaves, a perfeição das fórmas d'aquella viva esculptura.
Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez marmorea da
physionomia. Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de
alterar a regularidade do semblante, que só parecia ter vida nos olhos,
que eram lindos a mais não ser, e d'onde emanavam raios magneticos e
deslumbrantes, que enlouqueciam quem se atrevesse a encaral-os.
Aquelle rosto assemelhava-se a uma urna de marmore, em cima da qual
se tivesse collocado uma lampada de luz fascinadora. Era um
fragmento de gêlo dourado levemente pelos reflexos de um vulcão, mas
essa physionomia tinha um não sei que de mysterioso e sombrio, que
me impressionou profundamente.
Olhei para o relogio. Os ponteiros marcavam no mostrador meia-noite
em ponto.
No theatro os conjurados cantavam o côro das gargalhadas, e repetiam
rindo o estribilho:
Ah! chè baccano-sul caso strano Andrà dimani per la città!
III
Sem poder explicar a mim mesmo a fascinação irresistivel, que me
impellia tão imperiosamente á contemplação d'aquelle formoso
semblante, nunca mais desviei a vista do camarote. E ella, oh! ella
olhava-me com uma meiguice de enlouquecer.
Estava toda vestida de negro, e isso ainda mais contribuia para fazer
realçar a alvura da sua tez. Trajava elegantissimamente, mas com uma
singeleza, que me encantou, a mim, que procuro quasi sempre o bom
gosto na simplicidade.
Só ella occupava o camarote! Sósinha! Quem poderia ser? Tão nova,
tão formosa, e só! Oh! meu Deus! seria ella uma d'essas mulheres sem
pudor, que arrastam por toda a parte o manto de seda da ignominia, que
foram apanhar da lama, onde deixaram em troca o candido véo da
innocencia? Impossivel! O seu porte modesto, a simplicidade do seu
trajo eram um protesto vivo contra o descaro, e orgulhoso cynismo
d'essas Messalinas venaes.
Mas só! Quem sabe? Talvez a pessoa que a acompanhava, estivesse
escondida na sombra do camarote; talvez tivesse saído. Tudo podia ser,
mas a suspeita é que não podia manchar nem por momentos a luz
serena d'aquelle rosto angelical.
E eu olhava-a deslumbrado; e uma transformação estranha se operava
em mim. Parecia-me que as luzes do theatro iam esmorecendo a pouco
e pouco até se reduzirem á claridade sinistra das lampadas sepulchraes,
o palco e a platéa confundiam-se n'um vasto cemiterio, onde o vento da
noite fazia ondular a copa dos cyprestes, por entre cujos ramos
passavam os raios da lua, da pallida scismadora, da solitaria amiga das
sepulturas.
E ella, ella, a formosa desconhecida, vinha dizer-me com o seu olhar
tão triste:
--Queres o meu amor, ó pobre escravo d'um corpo material, ó doido,
que aspiras ao infinito sem pensares que tens os pés embaraçados na
immunda vasa d'esse oceano de desespero, que se chama a vida? Oh!
não queiras conhecer os segredos dos tumulos, porque tu, meu louro
poeta, voltavas ao mundo de cabellos brancos, se tocasses um só
minuto com os labios na taça inebriante dos amores da eternidade!
--Oh! que me importa a vida, respondia eu na allucinação febril, se em
troca d'esses dias de prosa me posso arrojar um instante só aos espaços
infinítos das sublimes commoções! A minha alma é como a aguia, que
se arroja ás regiões das nuvens, affrontando a tempestade, e cae depois
na terra fulminada pelo raio, que altiva foi provocar. Que me importa a
mim a morte, a condemnação eterna, se podér sorver nos teus labios
voluptuosidades desconhecidas, e lêr nos teus olhos o poema sublime
do amor, que eu phantasio?
A visão desapparecia; mas no palco a voz seductora d'Oscar, o elegante
pagem, vinha murmurar-me aos ouvidos:
Pieno d'amor Mi balza il cor; Ma pur discreto Serba il segreto.
E
Continue reading on your phone by scaning this QR Code
Tip: The current page has been bookmarked automatically. If you wish to continue reading later, just open the
Dertz Homepage, and click on the 'continue reading' link at the bottom of the page.