A Lenda da Meia-Noite | Page 6

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
assembléa acolheu a proposta com
enthusiasmo: e a mim e aos outros homens, que estavam presentes, não
desagradou a idéa de ouvir uma historia terrivel, em petit comité, no
pino da meia noite, tendo de voltar depois para casa por aquelles
caminhos desertos dos arredores de Lisboa; a mim sobretudo, que tinha
de passar pelas casas arruinadas de Campolide, sorria a idéa de ir com a

imaginação povoada de phantasmas, que poderia distribuir á vontade
pelos recantos d'essa paisagem tão magestosa, quando a lua envolve os
paredões solitarios na branca mortalha da sua luz, em quanto ao longe
se desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil grandioso
do aqueducto sombrio.
Roberto, devemos dizel-o para honra sua, não se fez rogado,
comprimentou silenciosamente a assembléa, e começou pouco mais ou
menos n'estes termos:
II
«Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira vez o Baile de
mascaras. Era uma noite de delirio no theatro de S. Carlos. Franschini,
o cantor sublime, fazia tremer de enthusiasmo a platéa inteira, e a voz
portentosa de madame Lotti despenhava sobre o publico palpitante
torrentes de melodia e de sentimento. O personagem de Amelia,
interpretado como então o foi, deixava de ser um typo creado pela
imaginação do poeta para se transformar, animado pelo Prometheo do
genio, n'um ente real, cujos sentimentos traduzidos em suspiros de
harmonia, iam arrancar os soluços dos peitos dos espectadores.
Era o poema da paixão, com todas as suas peripecias, mas da paixão
verdadeira, da paixão que geme e rasga os seios da alma, da paixão que
verte lagrimas, de cujas feridas brota o sangue, e não d'essa paixão
ficticia, cuja expressão convencional anima só a mascara, que a artista
desafivella apenas desce o panno.
Eu, perdido n'um canto da platéa, escutava, como escuto sempre
quando vou ao theatro lyrico. N'isso devo confessar-lhes que tenho
idéas um pouco originaes. O panno, que sóbe lentamente no principio
da opera, descerra para os outros espectadores meia duzia de taboas
rodeadas por bastidores de lona, onde uns poucos de artistas vão cantar
umas poucas de arias para divertimento do publico. Para mim é como
que uma janella encantada que se abre por onde eu me arrojo para os
espaços azues do ideal. Os outros analysam com toda a paciencia a
instrumentação e o canto, investigam se foram executadas as leis do
contraponto, e depois de satisfeitos applaudem compassadamente para

não rasgarem as luvas, voltam-se bocejando, e comprimentam a
senhora condessa de * * *, ou a senhora baroneza de * * *, cuja
chronica escandalosa vão contar immediatamente ao seu visinho da
esquerda.
Mas eu não. A minha alma, que illumina o fogo do enthusiasmo, não
póde ficar na terra, quando sente passar no espaço o sopro da harmonia,
da casta filha do céo. Desapparece o theatro, desapparecem os
espectadores, desapparece a ficção. Arrastada no manto de fogo do
ideal, a minha alma sente, enleva-se, palpita, geme, pranteia, soluça
com Macbeth o grito do remorso, suspira com Desdémona a canção da
saudade, gorgeia com Helena o hymno da desposada, escuta com
Rosina a meiga serenata, sólta com Lucrecia o rugido da envenenadora,
e volta depois á terra, deixando-me ficar pallido, extasiado, porque
entrevi em sonhos a deslumbrante claridade de um mundo
desconhecido.
Tinha começado o segundo acto, e eu seguia cheia de um vago terror a
scena lugubre do principio. As notas da aria de Amelia soavam-me aos
ouvidos como dobres de finados, e quando a Lotti soltou aquelle grito
de pavor, que vibrava sonoro e plangente pelo theatro, fazendo
estremecer os espectadores, eu levantei-me pallido, convulso, e senti
correr-me pela raiz dos cabellos o halito de fogo de uma mysteriosa
commoção.
O meu visinho olhou para mim espantado; sentei-me, deixei cahir a
cabeça entre as mãos, e scismei.
--Ó ideal, dizia eu, quando poderei finalmente sorver a longos tragos o
teu nectar precioso na cinzelada taça da phantasia?
«Ó virgem dos meus sonhos, ó anjo das azas de ouro, quando poderá a
minha alma, abraçando-se comtigo nas regiões celestes, aspirar a
plenos pulmões a balsamica aragem da poesia?... O que és tu, ente
mysterioso, que assim bafejas o espirito dos grandes poetas, e lhes vaes
murmurar, em noites de inspiração, os segredos sublimes que o vulgo
profano admira, mas não comprehende?

«Oh! quaes serão as visões d'estes homens portentosos, e nas suas
noites de febre, de delirio e de insomnia, em que mysticos amores te
enlaças tu com elles, ó ideal sublime, ó ideal inspirador? E emtanto nós,
os desherdados, bebemos com um riso alvar a agua insipida e lodosa
dos prazeres do mundo, e caminhamos n'esta planicie monotona da
vida, olhando com terror para o Sinai chammejante, onde campeiam,
cercados da divina aureola, os harmoniosos prophetas, os validos da
inspiração!
«Não posso; falta-me o ar no recinto estreito da vida social; a prosa
d'este
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