A Lenda da Meia-Noite | Page 5

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas
meia-noite. Soava ainda mais
lugubremente do que na vespera. Solta no meio dos loucos rumores do
vendaval, a vibração do bronze parecia uma nota perdida de agonia e de
desespero.
--Henrique! disse o doutor. Vamos! Estás um pouco pallido? É a
commoção do auctor e não a da meia-noite, juro-o aos deuses
immortaes. Vá! inflexão lugubre, voz cavernosa, gesto sombrio!
Henrique desenrolou um manuscripto, e, no meio da attenção geral, leu
o seguinte:
* * * * *

JULIETA
CONTO PHANTASTICO
I
Eram onze horas da noite, e estava-se tomando chá em casa do meu
amigo Frederico B * * *, em Bemfica. Havia uma roda d'intimos; a
conversa estava animada e o meu amigo, a quem a alegria e o entrain
dos convidados deixavam mais liberdade no cumprimento dos seus
deveres de dono da casa, aproveitava-se d'isso para contemplar
extasiado sua linda mulher, com quem casára havia pouco tempo, e que

do seu lado lhe sorria tambem com a meiguice e ternura da mulher que
ama devéras.
A conversa animára-se tanto, que se ia transformando em algazarra.
Discutia-se acaloradamente a questão da existencia das almas do outro
mundo, com grande desprazer d'um jornalista que por força queria
conduzir ao bom caminho aquelles discutidores extraviados, propondo
que se tratasse da bondade do ministerio, deixando de parte essas
tolices, que não serviam para nada. Mas ninguem lhe prestava attenção,
o que fez com que elle desesperado fosse lêr pela centesima vez um
artigo seu publicado n'um jornal que estava em cima de uma das mezas
da sala. Essa producção do seu engenho, que o jornalista relia com
tanto enthusiasmo merecia indubitavelmente tão paterna sollicitude,
porque elle e o revisor da imprensa tinham sido os seus unicos leitores.
Mas o auctor tantas vezes o tinha lido, e tal admiração professava pelo
seu proprio talento, que podéra dizer, sem receio de ser taxado de
mentiroso--«que o seu artigo tinha feito tal impressão, que lhe
constava ter havido uma pessoa que o relia a miudo, e sempre com
enthusiasmo crescente, honra de que se podiam gabar poucos artigos
politicos da imprensa portugueza.»
--Concluamos, bradava entretanto um medico materialista por dever de
profissão, onde collocam os senhores esse agente mysterioso a que dão
o nome de espirito, teimando em appellidar assim pomposamente o
mechanismo material, que a morte paralysa? Quando esse relojoeiro
sombrio, que se chama tempo, quebra com mão despiedosa as rodas
complicadas do nosso systema vital, onde se refugia esse ente inutil,
esse ser impalpavel a que os senhores espiritualistas querem dar as
redeas do governo d'este barro quebradiço, que constitue o homem? E
durante a vida quaes são os laços invisiveis, que prendem o escravo ao
senhor, o corpo material e fragil á alma etherea e immortal? Tremendo
absurdo, utopia talvez respeitavel, sublime tolice pela qual se tem
sacrificado innumeras gerações! Ah! mas sobretudo, é doido devéras
quem imagina que essa invenção impossivel, resultado das aspirações
da humanidade para a existencia eterna, possa vir aos cemiterios animar
os restos putrefactos dos reis da creação; quem tal suppõe, não sentiu

nunca debaixo do escalpello anatomico o cadaver inerte e despresivel,
nem póde avaliar com a vista infallivel da sciencia o nada immenso das
vaidades humanas!
--Fóra com o materialista, bradou um rapaz enthusiasta; sabes tu, meu
caro doutor, que a primeira vaidade humana cujo nada immenso tu
devias avaliar, é a vaidade da sciencia? Que sabes tu, presumpçoso
Hippocrates, que tens de recuar vencido perante o primeiro
obstaculosinho, que a natureza caprichosa queira oppôr á vista
infallivel, como tu dizes, do saber dos homens? E és tu que andas
perdido no meio da confusão dos systemas medicos a procurar no
labyrintho scientifico o fio conductor que te está sempre a escapar das
mãos, és tu que pretendes entrar com passo firme no insondavel
labyrintho da eternidade?... Espera, continuou elle vendo entrar um
mancebo muito pallido, que foi apertar a mão de Frederico, e
comprimentar a dona da casa, queres-te convencer? Pois ahi tens tu um
homem vivo, que teve relações directas com um phantasma.
--Roberto, assenta-te ahi, e conta-nos immediatamente a historia do teu
espectro, se v. ex.^{as} não se oppõem a isso ainda assim, continuou
elle, voltando-se para as senhoras presentes, que tinham escutado a
discussão metaphysica, com ligeiros signaes de aborrecimento.
Propôr a senhoras uma historia de phantasmas é despertar-lhes a
attenção, é fazer-lhes passar nas veias o estremecimento do
enthusiasmo. Não sei porque, esses entes frageis, pallidos ou rosados,
de olhos negros ou azues, alegres ou melancolicos, esses entes
femininos encantadores e timidos adoram tudo o que os faz tremer, e
recreiam-se sobre tudo com essas historias terriveis, em que o leitor
estupefacto encontra um punhal ao voltar de cada pagina, um ladrão á
esquina de cada periodo, um phantasma pelo menos em cada capitulo.
Por isso a parte feminina da
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